Folha de S. Paulo


Crítica: Obra pós-moderna de Terron tem marcante força realista

Era uma vez o pós-modernismo, que veio ao mundo cheio de metalinguagem, alusão, fundo-falso, "mise-en-abîme" e outras piscadelas de olho à torcida letrada.

Eram os anos 1990 iniciais, "Twin Peaks" à frente, momento de descrédito dos procedimentos narrativos lineares, das exigências realistas, da visada moral que apartava o bem do mal, momento de namorar com a bizarria, propício para exercícios retóricos abarrocados.

Joca Reiners Terron diz que desconfiança foi positiva para novo romance

Passado quase um quarto de século, essa estética encontra realização literária superior no novo romance de Joca Reiners Terron, "A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves".

O mandamento da esquisitice ajunta, num enredo que faz grande sentido, o leopardo do título, casamento de imigrante judeu com uma negra, jovem coreano católico e boliviano humilde trabalhando para livrar-se de dívida quase escravizante.

E ainda uma enfermeira com especialização na Inglaterra, um insone escrivão de polícia, veterinária com vocação para a TV, taxista que escuta música erudita e treina rottweilers assassinos e mais alguma coisa. Fácil?

A composição tem como âncora o escrivão de polícia, que narra o conjunto. Ele é filho de imigrante judeu, nascido em algum desvão da Rússia (mesmo habitat do leopardo-das-neves) e vindo ao Brasil antes da Segunda Guerra.

Leticia Moreira/Folhapress
Terron reúne figuras díspares em trama atormentada
Terron reúne figuras díspares em trama atormentada

Este pai está velho e mal consegue manter aberta a mercearia que foi o centro da vida de uma família no bairro paulistano do Bom Retiro ― onde mais tais elementos díspares poderiam vizinhar de modo verossímil, no Brasil, a não ser na megalópole?

A dedicação do filho projeta um drama convencional de nosso tempo, filhos precisando cuidar de pais velhos, neste caso já demenciando.

Mas que nada: assim que passam as preliminares, tem início um turbilhão, armado com grande competência e ritmo certo, em que a anomia do filho se multiplica, é rebatida e cresce em subtramas igualmente dramáticas, patéticas e trágicas.

Em especial, aquela que relata os cuidados da enfermeira para com uma criatura estranhíssima, condenada a nunca sair de casa por obscuros motivos de saúde.

Até que as duas, cuidadora e criatura, participam de uma expedição nada convencional, a "Nocturama", passeio noturno com traços de safári, mas dentro do zoológico da cidade, para observar de perto animais de hábitos noturnos, entre os quais o já citado leopardo.

A noite é o reino deste atormentado romance: tudo que nele se move é criatura das trevas, o escrivão-narrador, os onipresentes noias do crack e o taxista da música e dos cães ferozes, a esquisita criatura e o felino de origem russa. Tudo é noite, aqui, como naquele poema de Mário de Andrade que medita sobre a mesma São Paulo.

Joca Terron demonstra grandes virtudes literárias: sua escrita flui fácil e limpa, no manejo de elementos muito díspares que poderiam levar a um mero exibicionismo pseudo-satânico, falso cínico. Mas não: seu romance, com marcante força realista, lá no último terço deriva para uma alegoria, mas sem solavanco, como o melhor César Aira, seu irmão espiritual na literatura argentina atual.

O efeito do romance é triste, muito triste, bem distante do brilhareco com que se comprazia a moda pós-moderna. Não quer denunciar nada do tanto de horrores que narra; mas também não os trata como "faits-divers". Um grande feito literário, que merece leitura.

LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de literatura na UFRGS e autor de "Filosofia Mínima" (Arquipélago Editorial).

A TRISTEZA EXTRAORDINÁRIA DO LEOPARDO-DAS-NEVES
AUOTR Joca Reiners Terron
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 36 (176 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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