Folha de S. Paulo


Crítica: Em capítulos curtos e poéticos, Raimundo Carrero flagra flashes da alma

Para o brasileiro acostumado a viver imerso nos clichês identitários nacionais --praia, Carnaval, euforia, futebol carioca no antigo Maracanã, sensualidade dos mulatos etc.--, vai ser difícil aceitar a combinação que está na alma e na estrutura de "Tangolomango", o novo romance de Raimundo Carrero.

Autor Raimundo Carrero cria romance em reação a AVC

Para começar, o cenário é o Recife, apresentado para além dos clichês correspondentes, embora a escrita não tenha medo de dar nome a bairros, ruas e eventos.

Depois, a combinação temática entre os dias de Carnaval e uma personagem melancólica, misturando a sugestão de liberação implicada nele e a submissão à tristeza implicada nela.
Tangolomango é palavra afro-americana, que significa algo vago, obscuro, ligado ao universo popular da música e da dança.

Leo Caldas/Folhapress
O escritor Raimundo Carrero
O escritor Raimundo Carrero

Todos esses traços foram conjurados por Carrero para a composição do romance, apresentado como parte de uma trilogia e com vocação certa para o painel largo, como os de Erico Verissmo e Jorge Amado.

A obra de Carrero parece querer ombrear com eles, numa aspiração legítima, mas custosa e talvez impossível.

"Tangolomango" faz bem seu serviço: nos dá a intimidade de Guilhermina, mulher madura e solteira que criou seu sobrinho --na abertura do texto ficamos sabendo que ele assassinou a mãe biológica e uma irmã.

O livro quer nos dar Guilhermina por dentro: embora o narrador seja palavroso, o que está em jogo é a sensibilidade dela, a consciência fluida de seu fracasso na vida.

Vida que é a do Recife, no Carnaval --não um Carnaval, de algum ano, e sim uma espécie de fatia atemporal: lemos cenas que são do presente maduro da personagem e cenas de seu passado, tudo sem data, propositalmente embaralhado como para ressoar num plano absoluto.

Aliás, todo o romance parece viver fora da sucessão temporal. Os capítulos são curtos, sempre anunciados por títulos provocativos, mais poéticos do que narrativos, e que por isso acrescentam uma camada de significados.

Em todos eles, um narrador onisciente descreve, com grande gosto, cenas da rua e flashes da alma, tudo de mistura, num andamento bastante sugestivo.

O resultado geral não alcança excelência, para este leitor aqui.

Em parte porque há algo de instável e de frágil no nexo entre o enredo e a narração: os fatos (tia que deseja sexualmente o sobrinho, matricídio etc.) vão na linha da tragédia, mas o tratamento dado a eles pela narração os encaminha para o drama burguês.

Em outra parte, talvez mais grave, porque tudo existe numa dependência muito cerrada da visão do narrador, que está por tudo, não apenas como o filtro que sempre é, mas como um pensador, uma espécie de comentador de tudo, e que termina por nos dar pouco da força interna da personagem, e muito de sua visão sobre tudo.

LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de literatura na UFRGS e autor de "Filosofia Mínima" (Arquipélago Editorial).

TANGOLOMANGO
AUTOR Raimundo Carrero
EDITORA Record
QUANTO R$ 29,90 (128 págs.)
AVALIAÇÃO bom


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