Folha de S. Paulo


Crítica: Philip K. Dick injeta angústia kafkiana na ficção científica

Philip K. Dick explorou duas questões filosóficas básicas em sua ficção científica: o que é a realidade? O que é um ser humano?

Há na sua obra outro tema recorrente: a paranoia constante de quem vive sob um Estado policial, repressivo, que espiona e manipula seus cidadãos. O livro/filme "O Homem Duplo" ("A Scanner Darkly", 1977/2006) é um bom exemplo.

No romance "Fluam, Minhas Lágrimas, Disse o Policial", Jason Taverner, um cantor e apresentador de TV com um programa de 30 milhões de espectadores, amanhece num quarto de hotel, sem bagagem, sem documentos, sem saber como foi parar ali.

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O escritor americano de ficção científica Philip K. Dick
O escritor americano de ficção científica Philip K. Dick

Descobre que foi varrido da existência: amigos, colegas, empregadores, ninguém parece conhecê-lo, e não há registro civil a seu respeito.

O começo do século 21 em que Dick ambienta seu romance é um típico pesadelo totalitário da Califórnia dos anos 1970: as universidades viraram campos de refugiados subterrâneos onde estudantes continuam a lutar contra a polícia.

Jason Taverner é um personagem que aparece a todo instante na obra de Dick: o fugitivo numa cidade hostil, perseguido por policiais ou por agentes que tentam prendê-lo ou matá-lo.

É uma situação característica da "pulp fiction" e suas perseguições intermináveis para esticar enredo, mas Dick deu a esse clichê uma angústia kafkiana, que equipara seus melhores livros à obra de George Orwell ("1984") ou Aldous Huxley ("Admirável Mundo Novo").

Com um olhar novo, de um leitor de FC que lia e escutava de tudo --o título é uma citação musical de John Dowland, de 1600.

O livro também reflete a relação ambivalente de Dick com as mulheres, que ele via como redentoras ou malignas. Aqui, surgem várias: Heather, Marilyn, Kathy, Alys, Ruth, Mary Anne...

Cada uma pode ser uma Medusa devoradora e pode se tornar a "dark-haired girl", a mulher capaz de amar desinteressadamente, que Dick celebrou em tantos textos.

O livro foi escrito em alguns meses de 1970, quando o quarto casamento de Dick estava se encerrando, e logo após uma experiência sua com mescalina. Ao contrário do que se pensa, suas drogas não eram LSD e maconha; em geral, eram misturas de comprimidos de vários tipos.

É uma fuga alucinada de um homem que de repente se viu sem lugar no mundo onde tinha sido famoso, e teve que se reconstruir do zero.

BRAULIO TAVARES é escritor e compositor. Publica no blog Mundo Fantasmo (mundofantasmo.blogspot.com).

Fluam, minhas lágrimas, disse o policial
autor Philip K. Dick
editora Aleph
TRADUÇÃO Ludimila Hashimoto
Quanto R$ 29,90 (256 págs.)
avaliação ótimo


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