Folha de S. Paulo


Primeira diretora a rodar longa de ficção na Arábia Saudita conta desafios que superou

De tempestades de areia ao machismo. Foram diversos os obstáculos que Haifaa Al Mansour, 38, teve de superar para ser a primeira mulher a rodar um longa de ficção na Arábia Saudita.

Cineasta cancela vinda ao Brasil por "motivo de força maior"

O resultado da empreitada, "O Sonho de Wadjda", ganha pré-estreia nesta quarta-feira (24) em São Paulo e reflete as mudanças que estão em curso em um país conhecido pelo conservadorismo.

A cineasta viria ao Brasil para participar da sessão, mas, segundo um comunicado da Imovision, responsável pela distribuição de "O Sonho de Wadjda", ela não pôde embarcar "por motivo de força maior". De acordo com a distribuidora, o visto de Haifaa não ficou pronto a tempo e a cineasta foi obrigada a cancelar sua vinda ao país.

O filme chega aos cinemas brasileiros no próximo dia 3.

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A saudita Haifaa Al Mansour, diretora e roteirista de
A saudita Haifaa Al Mansour, diretora e roteirista de "O Sonho de Wadjda"

Wadjda é uma pré-adolescente que sonha em ter uma bicicleta para poder brincar com o amigo e vizinho Abdullah. O problema, que parece simples, ganha contornos de desafio em um país onde, em 2002, 15 meninas morreram em um incêndio numa escola de Meca após a polícia religiosa tê-las impedido de sair sem o véu do prédio em chamas.

São muitos os controles que rondam as mulheres no país: elas precisam da autorização de um homem para viajar, ter algum trabalho remunerado ou cursar o ensino superior. Dirigir também é proibido, embora a permissão esteja sendo analisada pelo conselho consultivo Shura, que tem o papel de aconselhar o governo a respeito de novas leis.

Dessa maneira, andar de bicicleta não é uma atividade de meninas que prezem por sua honra.

Dos pais, Wadjda não pode esperar o presente. Sua mãe anda preocupada com o fato de o marido estar buscando uma segunda mulher, e o pai nunca está em casa.

É quando é divulgado em sua escola um concurso religioso com prêmio em dinheiro --o suficiente para a compra da bicicleta. Até então alheia e relutante a assuntos religiosos, Wadjda deve enquadrar-se no comportamento esperado de uma garota devota para vencer a disputa.

CENSURA

Como foi possível filmar uma história com esse conteúdo em um país onde há censura? Na Arábia Saudita, afinal, os meios de comunicação devem obedecer diretrizes buscando a "purificação" cultural de uma informação antes que ela venha a público.

Além disso, o país também possui um corpo religioso --a Comissão para a Promoção da Virtude e a Prevenção do Vício-- responsável por delimitar o padrão ético nacional. A instituição controla as atividades culturais e pode ordenar prisões e outras punições aos comportamentos considerados antiéticos.

POLÍCIA NO SET

Em entrevista à Folha por e-mail, a diretora explicou as dificuldades: "Enviamos toda a papelada e conseguimos as aprovações necessárias. A polícia aparecia com bastante regularidade no set para ver se tínhamos as autorizações, mas depois nos deixava em paz".

Não só a polícia ficou incomodada. Nas regiões mais conservadoras, a equipe comandada por Al Mansour sofreu ameaças. Em algumas ocasiões, ela teve que dirigir os atores à distância, de uma van e pelo celular."Apesar disso, a maioria das pessoas só estava curiosa e animada em ver algo novo acontecendo nas redondezas."

Às dificuldades culturais somou-se uma tempestade de areia durante as gravações.

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Na coprodução germano-saudita, a pré-adolescente Wadjda sonha em ter uma bicicleta
Na coprodução germano-saudita, a pré-adolescente Wadjda sonha em ter uma bicicleta

Para Al Mansour, foi essencial que a história de Wadjda fosse filmada na Arábia Saudita, em Riad, a capital. "Eu queria que os sauditas tivessem a oportunidade de ver suas vidas na tela e ter uma história que fosse autêntica e próxima deles."

TRAJETÓRIA

A tranquilidade da diretora parece ser o resultado de uma trajetória calejada: "Meu pai costumava receber cartas de familiares, de amigos e do imã da mesquita em frente a nossa casa pedindo-lhe que me mantivesse sob controle, que ele desse um 'basta' a minha carreira como diretora. Mas ele e minha mãe nunca ligaram para o que as pessoas pensavam sobre mim".

A relação de Al Mansour com o cinema começou na infância. Seu pai costumava exibir para ela e seus 11 irmãos filmes em VHS ("Talvez para manter todos nós quietos!"), como antigos filmes egípcios e produções de Bollywood.

Mas o interesse pelo cinema começou depois de ela assistir a produções dos Estados Unidos. "Respeito os filmes americanos, mesmo aqueles ruins, porque eles realmente entendem as emoções. Eles tiveram uma grande influência sobre mim", relata.

Apesar dos inúmeros controles, a situação feminina na Arábia Saudita começa aos poucos a mudar.

Em janeiro, o rei Abdullah bin Abdulaziz al Saud e os líderes religiosos do país decidiram que as mulheres terão de compor sempre um quinto das 150 cadeiras da Shura.

Em 2011, já houvera a decisão de que elas poderiam votar e concorrer nas eleições locais de 2015.

No ano passado, pela primeira vez, mulheres representaram o país em uma Olimpíada e foi implementada uma lei que autorizava a mão de obra feminina em lojas de lingerie e cosméticos.

Por fim, no início de abril deste ano, a Arábia Saudita passou a permitir que mulheres andem de bicicleta --não se sabe até que ponto por influência do filme de Al Mansour--, mas apenas em áreas destinadas ao lazer e com um guardião masculino.

ANTENAS PROIBIDAS

Al Mansour ainda não sabe se o filme será exibido em seu país, onde há restrições ao funcionamento de cinemas.

Muito do contato da população com filmes vem de DVDs e da televisão via satélite, o que tem trazido dificuldades ao governo para controlar o fluxo de imagens e informações estrangeiras que chegam ao país. A venda, a instalação e o uso de antenas de recepção de satélite são proibidos, o que não impediu sua disseminação.

Os sauditas também usam mecanismos que permitem o download de filmes estrangeiros pela internet.

Apesar da leve rebeldia da protagonista Wadjda, Al Mansour não considera o seu filme "contra o sistema".

"O filme é menos uma crítica ao sistema e mais às pessoas que acham que são impotentes para mudar o lugar onde vivem. A conformação é um caminho mais fácil; já a rebeldia pode ser difícil, mas é muito mais compensadora."

O SONHO DE WADJDA
DIREÇÃO Haifaa Al Mansour
PRODUÇÃO Arábia Saudita/Alemanha, 2012
QUANDO nesta quarta-feira (24), às 21h30, pré-estreia aberta ao público; estreia prevista para 3 de maio
ONDE Reserva Cultural (av. Paulista, 900; tel.: 0/xx/11/3287-3529)
QUANTO de R$ 13 a R$ 26
CLASSIFICAÇÃO livre

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RAIO-X
HAIFAA AL MANSOUR

VIDA
A saudita tem 38 anos e é formada em literatura pela Universidade Americana no Cairo, com mestrado em direção e estudos de cinema na Universidade de Sydney, Austrália

FILMOGRAFIA
Em 2005, realizou o documentário "Women Without Shadows" ("mulheres sem sombras, em tradução livre). Sua obra inclui, ainda, os curtas "Who?" ("quem?"), "The Bitter Journey" ("a jornada amarga") e "The Only Way Out" ("a única saída").

Seu primeiro longa de ficção, "O Sonho de Wadjda" (2012), é uma coprodução entre Arábia Saudita e Alemanha e levou o prêmio Dioraphte, da audiência do Festival de Roterdã a filmes apoiados pelo fundo holandês, e o prêmio da Confederação Internacional dos Cinemas de Arte, no Festival de Veneza


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