Folha de S. Paulo


Crítica: "O Jantar Errado", do albanês Ismail Kadaré, mostra circo político de horrores

Um dos romances mais recentes do albanês Ismail Kadaré, "O Jantar Errado", publicado originalmente em 2009, palmilha o mesmo território visitado pela trilogia "No Coração dos Boatos", do brasileiro Uilcon Pereira, lançada quase secretamente no início dos anos 80.

"Quase secretamente" porque na época poucos felizardos tiveram contato com "Outra Inquisição", "Nonadas" e "A Implosão do Confessionário", preciosidades hoje só encontradas em sebos. Uilcon faleceu em 1996 e toda a sua obra parece ter sido arquivada num porão qualquer, à mercê do esquecimento.

É certo que o território percorrido por Kadaré e Uilcon não é novo na literatura. Pirandello, Kafka, Beckett e tantos outros exploradores e aventureiros já estiveram lá. Na falta de um nome melhor, podemos chamá-lo de "crise epistemológica", que em bom português significa: falhas na aquisição e no gerenciamento do conhecimento.

Em sua sátira a todas as inquisições possíveis, religiosas ou totalitárias, Uilcon esbaldou-se no nonsense e na irreverência, propondo uma longa narrativa feita apenas de perguntas absurdas e respostas disparatadas.

Kadaré não ficou atrás. Com um humor dilacerante, "O Jantar Errado" faz da boataria e das informações desencontradas uma espiral apertadíssima que acaba enlaçando e estraçalhando todos os personagens.

PARANOIA

Durante a Segunda Guerra Mundial, a Albânia é invadida pelas tropas do Terceiro Reich. No dia 16 de setembro de 1943, os nazistas chegam à pequena Girokastra (cidade natal de Kadaré), onde mora o doutor Gurameto Grande. Bela coincidência: o comandante alemão é amigo do médico. Ambos estudaram na mesma faculdade, em Munique. Forçado a ser hospitaleiro por um antigo código de honra albanês, o doutor Gurameto Grande oferece um jantar ao comandante.

A partir daí, a espiral de calúnias e conjecturas fará seu estrago. Ninguém sabe exatamente o que foi conversado durante o jantar. Para uns Gurameto é um traidor; para outros, um patriota. Com a saída dos nazistas e a entrada dos comunistas, a situação só piora. Diferentes versões dos mesmos fatos ora algemam ora libertam o doutor Gurameto.

Para embrulhar ainda mais o imbróglio, na cidade também mora um doutor Gurameto Pequeno, rival do Grande. A paranoia de comunistas, nacionalistas e monarquistas perseguirá a dupla de médicos ao longo dos anos, lançando em seu caminho conspiradores, loucos, inquisidores e torturadores.

Aposto meus exemplares de "No Coração dos Boatos" que Kadaré se divertiu muito, muitíssimo, erguendo esse circo político de horrores em que tudo, principalmente a verdade, pode ser e não ser de várias maneiras.

LUIZ BRAS é autor de "Sozinho no Deserto Extremo" (Prumo).

O JANTAR ERRADO
AUTOR Ismail Kadaré
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Bernardo Joffily
QUANTO R$ 36 (168 págs.)
AVALIAÇÃO bom


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