Folha de S. Paulo


Campeão do Carnaval, Martinho da Vila chega aos 75 'devagarinho', mas cheio de projetos

Martinho da Vila tinha muito para festejar.

Depois de desfilar em sua Vila Isabel na última terça, mesmo dia em que completou 75 anos, viu a escola vencer seu terceiro Carnaval, com um samba-enredo já considerado histórico, que compôs com seu filho Tunico e os parceiros Arlindo Cruz, André Diniz e Leonel.

Mas, na hora da festa do título, preferiu sumir. "Eu pensei: a imprensa toda vai estar lá. Se eu for, vai ser todo mundo atrás de mim. Não dá."

Fugiu para a roça, a mesma que cantou na Sapucaí, do fogão de lenha, da prosa com os "cumpadi", no sítio onde nasceu, em Duas Barras, região serrana do Rio.

Lá, em paz e cercado de amigos, familiares e de seus vários bichos --cachorros, patos, galinhas, bois, cavalos--, fez um churrascão daqueles.

Foi nesse ambiente que recebeu a Folha para falar sobre a vitória de sua Vila e sobre o Carnaval e sobre os inúmeros projetos que tem pela frente, incluindo novos livros a discos.

Martinho, que faz quatro shows no Sesc Vila Mariana no final deste mês (com ingressos já esgotados), também será homenageado com um "sambabook", no qual seus sucessos são interpretados por artistas como Paulinho da Viola ("Quem É do Mar Não Enjoa") e Pitty (cantando "Roda Ciranda").

*

Folha -Como surgiu o tão elogiado samba-enredo deste ano?
Martinho da Vila - Esse vai ficar entre os grandes sambas da Vila Isabel. Quando a gente terminou o samba, tínhamos certeza de que estávamos com uma grande criação nas mãos.

Agora, a receptividade foi muito maior do que a gente esperava. Eu até achei que não ia ser tanto, porque ninguém se preocupou em popularizar demais o samba, refrão, nada disso. Só pensamos em contar a história da vida na roça. E deu certo.

O sr. sabe quando uma criação vai dar certo?
O criador não pode pensar em fazer sucesso. Não pode escrever um livro para ele fazer sucesso, fazer um samba para ele acontecer. Você tem de fazer o que gosta. A maioria das coisas que eu fiz foi dentro do meu gosto. Fiz tudo para mim mesmo, mas aquilo avança. Tem de pensar em fazer bem feito, direito. O sucesso é consequência.

Tem novos discos a caminho?
Vai sair um "sambabook" em abril, com minhas músicas gravadas por 24 artistas. E pretendo também fazer um disco com todos os meus sambas-enredos, são 11 da Vila Isabel e uns que eu fiz na Aprendizes da Boca do Mato, minha primeira escola. Dá para juntar tudo num disco, vou ver se consigo gravar neste ano. Vai se chamar "Escola de Samba-Enredo", mostrando o lado cultural dos sambas-enredos, as informações que eles trazem.

Tem um de que o sr. se orgulhe mais?
Música é assim: tem época que você gosta mais de uma coisa, depois de outra. Então não tem muito. "O Sonho de um Sonho" eu acho muito fantástico.

O primeiro disco que o sr. gravou ("Nem Todo Crioulo É Doido", 1968) também está sendo relançado agora.
Isso aí foi o seguinte: o Sérgio Porto, que era um grande humorista, fez o "Samba do Crioulo Doido", que era um samba que agredia todos os compositores de escola de samba. E também fez um Show do Crioulo Doido, eu fui ver, era racista pra caramba. Eu resolvi fazer uma coisa contrária, "Nem Todo Crioulo É Doido". Juntei o pessoal de escola de samba, fiz um show e gravamos o disco. Eu nem pensava em cantar, a minha mulher antiga [Anália Mendonça, com quem Martinho teve três filhos, entre eles Mart'nália] tinha vontade de cantar e eu ia botar ela na maioria das músicas. Mas acabou que ela não quis mais, e eu tive que cantar as músicas que ela no quis. O disco foi parar numa gravadora e eles gostaram de eu cantando, mandaram me contratar. Foi assim que eu comecei.

Em entrevista recente à Folha, Zeca Pagodinho disse que o Carnaval acabou. Como o sr. vê a festa hoje?
É melhor. Antes, as escolas de samba só se apresentavam para quem era daquele meio, era quase uma apresentação familiar. Elas foram crescendo, hoje tornaram-se o maior espetáculo da Terra, uma coisa fantástica.

E a questão do patrocínio?
Quando tem patrocinador, facilita muito, porque dinheiro é fundamental para fazer um grande espetáculo. Não pode fazer um espetáculo bonito e pobre. Agora, se você se curvar aos desejos do patrocinador, faz uma porcaria, fica ruim. Vira um veículo de propaganda, e não é essa a proposta. Hoje, uma escola de peso tipo a Vila pode escolher patrocinador. E a gente dá as normas. Aí é legal.

Como anda seu lado escritor?
Uma editora me encomendou um livro sobre o Pixinguinha. Ainda não sei como vou fazer, a ideia é contar para crianças, mas botando um pouco de informação. Tem um outro que já está pronto, chama-se "O Nascimento do Samba", também para crianças. Eu inventei uma história, pegando esse gancho de onde nasceu o samba, se foi aqui, na Bahia ou acolá. Aí fiz umas brincadeiras, está bem legal. Estou procurando uma editora para distribuir, mas, se não achar, eu mesmo vou lançar. Falando em literatura, meu livro "Ópera Negra" ganhou versão francesa, que vai ser lançada agora em março no Salão do Livro de Paris, eu vou lá fazer esse lançamento.

Como o sr. organiza seu tempo entre tantos projetos?
Não faço nada com pressa, afoitamente. Devagarinho, você faz muita coisa. Eu não abro mão do tempo ocioso, ele é fundamental. Se você quiser fazer tudo ao mesmo tempo, não dá. Eu vou devagar. E também não precisa abarcar tudo. Por exemplo: nesse Carnaval, eu trabalhei no conceito do enredo da Vila com a Rosa [Magalhães] e o Alex Varela, fiz o samba-enredo com a rapaziada, desfilei. Aí, na hora da festa, eu pensei: a imprensa toda do Brasil está na Vila Isabel. Se eu for para lá, vai ser todo mundo atrás de mim. Não dá, eu falei 'Preto [o filho mais novo], vambora?'. Aí a gente veio para cá, ficamos aqui assistindo à apuração.

É mais difícil escrever livro ou música?
O livro precisa mais de uma dedicação permanente, muita disciplina, senão você não escreve. Tenho colegas que têm seis livros que não estão concluídos, eu não tenho nenhum. Faz um de cada vez, é isso. Devagarinho a gente vai longe. É filosofia de vida, não fazer nada correndo.

Com a música é assim também?
Um samba-enredo é quase como um livro, é uma tarefa. Mas é mais fácil, porque você tem um tema. O chato é quando me pedem para fazer música sem tema. O difícil é ter uma motivação, um gancho. Uma vez, a Alcione ia fazer um disco e queria gravar uma música com a Maria Bethânia, e me pediu para fazer. Eu enrolei, ela me cobrava a música, falava "o que você fizer tá bom". Aí piorou (risos). Aí encontrei com a Bethânia, "Martinho, como é que é, e a música?". Eu falei "Bethânia, eu não sei o que fazer", e ela me disse "Ah, Martinho, faz uma coisa qualquer, girando". Pronto, me deu o mote: eu fiz tudo girando. [canta "Roda Ciranda"] "Ciranda de roda / Do samba de roda da vida / Que girou / Que gira" e fui por aí. Foi mais fácil.

Quando uma música faz sucesso, não há pressão para repetir a fórmula?
Sempre tem. Aí eu faço outro disco, e os caras querem morrer. Mas ele acontece. Só tem um cara que faz uma coisa que é mais ou menos dentro da mesma praia e é sucesso sempre, é o Roberto Carlos. É um caso inédito. Ele faz o mesmo tipo de som, o mesmo tipo de disco, as capas são quase todas iguais, e é uma coisa genial, não dá para explicar.

O sr. faz a letra ou a melodia primeiro?
A melodia é mais fácil de fazer. Eu já tenho muita prática, ela vem na sua cabeça, você acorda cantarolando um negócio, com a prática você desenvolve aquilo. Agora, para botar uma letra é mais complicado. Você tem compromisso com tudo, com a mensagem, com o português, com a poesia, com a cultura.

Como o sr. vê a indústria da música atualmente?
Hoje, as gravadoras não querem investir. Antigamente, elas gastavam muito, mas sabiam que iam ganhar muito. Hoje não dá para fazer um barato desses. A maioria dos artistas hoje produz o próprio disco e leva na gravadora para ver se eles aceitam. Eu ainda dou sorte, as gravadoras me procuram, mas a maioria não é assim. Tem um lado que melhorou: a tecnologia facilitou uma porção de coisas, qualquer um consegue gravar um disco, tem muita produção. Mas está mais difícil fazer alguém ouvir um disco. O cara consegue gravar, mas não tem condição é de fazer ser ouvido. Eu mesmo, quando gravo um disco, qualquer rádio quer que eu vá lá. Mas o disco que está sendo lançado, a rádio não toca. Eu vou lá, fazem uma grande entrevista, tocam música antiga, mas a música de trabalho, não tocam.

Por quê?
Porque tem outro acordo para isso. Hoje tudo está indexado. Antigamente você tinha como botar o disco para tocar, contratava um divulgadorzinho, ia na rádio. Hoje, o radialista pode ser meu amigo, mas não pode tocar a música, porque ela já vem na programação da rádio, é tudo organizado. Ele é apenas um comunicador.

Com que frequência o sr. tem feito shows?
Varia. Eu faço um tempo, depois não faço. Quando estou querendo faço mais um pouco, depois crio problemas para fazer. Agora vou fazer quatro dias em São Paulo, no Sesc [Vila Mariana], me chamaram para fazer um show com o melhor do Carnaval. Aí, no início de março, vou fazer dois recitais de piano e voz em Portugal, no Porto e em Lisboa, eu e Maíra [Freitas, sua filha e pianista de formação erudita]. Ela é muito versátil, toca clássico, a gente canta junto. Fica bonito.

O sr. tem ouvido gente nova, bons artistas?
Tem bastante. O sambabook, por exemplo, e não foi nenhuma imposição minha, tem o Marcelinho Moreira, a Ana Costa, o Diogo Nogueira, o Moyseis Marques, a Pitty.

Pensa em se candidatar novamente à Academia Brasileira de Letras?
Não, aquilo [a candidatura em 2006] foi só para causar burburinho. A academia um lugar de gente vaidosa. para gente velha (risos).

Como foi chegar aos 75 anos?
Estou na boa. Não vejo muita diferença, tirando usar óculos para ler, o que é chato para caramba. Não tenho restrições, posso tudo. Acho que ainda tenho muita coisa a fazer. Não sei o quê, mas vou fazer bastante.


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