Folha de S. Paulo


Confira doze indicações do 'Guia' de livros de ficção estrangeira

GALVESTON

Para onde vai o romance criminal? O mais maria-vai-com-as-outras dos gêneros já flertou com ficção-científica (K. Dick), terror (Miéville), fantástico (Poe), metaliteratura (Bolaño), realismo sociológico (Fonseca), comédia (Levrero). Pizzolatto o aproxima do western e de um tema caro ao gênero: a proteção a mulheres "desonradas" como veículo de salvação.

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Galveston

Como se sabe pela excepcional primeira temporada e pela inquietante (e confusa) segunda temporada da minissérie "True Detective", que escreveu e produziu, o norte-americano tem obsessão por crimes sexuais, psicologia ambivalente e atmosfera fantasmagórica. Neste primeiro romance, ainda não flerta com o fantástico de TD, mas já usa a tensão sexual como motor.

Big Country, um capanga texano durão, escapa de chacina encomendada pelo patrão e resolve salvar Rocky, prostituta de 18 anos. Ele crê não ter nada a perder: seus pulmões estão devastados pelo câncer. A linguagem "hardboiled", o ritmo veloz, a beleza das descrições, a urdidura dos diálogos e a esperteza das viradas narrativas irão satisfazer o fã da série —mas falta aquela esquisitice Carcosa (o templo do mal de "True Detective") que tornava a trama perturbadora. (RONALDO BRESSANE)

AUTOR: Nic Pizzolatto
TRADUÇÃO: Alexandre Raposo
EDITORA: Intrínseca
QUANTO: R$ 29,90 (240 págs.)
AVALIAÇÃO: muito bom

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SANGUE NO OLHO

Jovem, ela foi saudada por Roberto Bolaño como promessa da literatura chilena. Madura, Lina Meruane chega ao Brasil com um romance muito esquisito. A narradora e protagonista é escritora, vive em Nova York, está prestes a se mudar para o belo apartamento do namorado e a vida parece lhe sorrir quando uma rara moléstia faz com que seus olhos fiquem injetados de sangue, vendo tudo em branco.

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Entram em cena uma família amalucada, um médico enigmático, um professor que, como seu guia, transforma a amizade em relação sadomasoquista. A atordoante narrativa aborda esse pesadelo não sem humor e expressão política —fazendo da doença uma aventura ficcional tão densa quanto "Édipo Rei" (Sófocles) ou "Ensaio Sobre a Cegueira" (Saramago)—, até que reflita sobre a tragédia dos exilados do mundo visual: "Eu não passo de um animal querendo deixar de ser um". (RONALDO BRESSANE)

AUTOR: Lina Meruane
TRADUÇÃO: Josely Vianna Baptista
EDITORA: Cosac Naify
QUANTO: R$ 34,90 (192 págs.)
AVALIAÇÃO: ótimo

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ZONA DE INTERESSE

Martin Amis, em sua produção mais recente (a partir de "Casa de Encontros", de 2007), ou talvez desde o início (com "Dinheiro", de 1984), tem oferecido narrativas de tese com viés sociológico, aproximando-se perigosamente de certa zona de desinteresse. Digamos que há disciplinas mais adequadas para avaliar os motivos de Adolf Hitler ao promover a insanidade do Holocausto, e Amis considera alguns deles no excelente posfácio deste romance.

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A Zona de Interesse

Se o altruísmo não cabe na grande literatura, contudo, não há melhor lugar para se reconhecer a alteridade do que na sátira desenfreada promovida em "Zona de Interesse", resultando numa paródia involuntária do drummondiano poema "Quadrilha", adaptado às avessas, neste caso com nomes germânicos: "Golo Thomsen amava a mulher do comandante Paul Doll que não amava ninguém". Uma sátira a Auschwitz, você se pergunta, e uma história de amor no campo de concentração? Sim, eu respondo, Martin Amis ama o desconforto. (JOCA REINERS TERRON)

AUTOR: Martin Amis
TRADUÇÃO: Donaldson Garschagen
EDITORA: Companhia das Letras
QUANTO: R$ 54,90 (392 págs.) e R$ 37,90 (e-book)
AVALIAÇÃO: bom

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NÓS, OS AFOGADOS

Premiado na Dinamarca e após carreira de sucesso na Europa, "Nós, os Afogados" ganha tradução no Brasil. A obra de Jensen, que lhe rendeu o prêmio Danske Kank, conta a história da pequena cidade portuária de Marstal entre os anos de 1848, começando com a batalha contra os alemães de Schleswig-Holstein, até 1945, com a rendição dos alemães na Segunda Guerra.

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Narrado na pouco usual primeira pessoa do plural, acompanhamos a voz de um grupo social acostumado a ver os homens no mar e as mulheres na terra, numa narrativa intensa e cuidadosa de grandes navegações e batalhas navais onde "aqueles dentre nós que ainda estávamos em pé trabalhávamos entre pilhas de cadáveres e moribundos", em meio a "entranhas, sangue e intestinos esvaziados", e com descrições que fazem lembrar o Tolstói de "Guerra e Paz".

Aos poucos, o livro vai tecendo a história daqueles "que ficaram sem ser enterrados ao longo dos séculos" e que "tinham estragado nossa vida com saudades". (ROBERTO TADDEI)

AUTOR: Carsten Jensen
TRADUÇÃO: Ana Ban
EDITORA: Tordesilhas
QUANTO: R$ 62,50 (696 págs.)
AVALIAÇÃO: muito bom

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CANADÁ

Um romanção daqueles começa por um parágrafo inquietante: "Para começar, vou contar o assalto que meus pais cometeram. Em seguida, os assassinatos que aconteceram mais tarde. O assalto é a parte mais importante, já que serviu para mudar o rumo da minha vida e o da minha irmã. Nada faria sentido se eu não contasse desde o início. Nossos pais eram as últimas pessoas no mundo capazes de roubar um banco".

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De fato, a vida do jovem Dell Parsons parecia normal até que os pais, também aparentemente normais, cometessem um delito bizarro. Aos poucos, porém, vamos percebendo que tudo é aparência nesse romance do norte-americano Richard Ford.

O que parecia ser um romance de formação logo evolui para "thriller" policial —e a agilidade da prosa de Ford agarra o leitor pela mão. Ao fim, temos um romanção daqueles da vasta tradição realista norte-americana de Faulkner e Flannery O'Connor. Mas o livro não se passa no sul (onde nasceu Ford), e sim num estranho e solitário Canadá dos anos 1960, para onde Dell vai após o ato insensato dos pais, tentar reconciliar-se com o destino —tarefa que será pouco verossímil. (RONALDO BRESSANE)

AUTOR: Richard Ford
TRADUÇÃO: Mauro Pinheiro
EDITORA: Estação Liberdade
QUANTO: R$ 59 (456 págs.)
AVALIAÇÃO: ótimo

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OS VELHOS TAMBÉM QUEREM VIVER

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Entre 1992 e 1996, Sarajevo foi cercada pelo exército sérvio: 20 mil mortos, 50 mil feridos. "Um sniper atingiu Admeto; Admeto está a morrer. Sabe que poderá ser salvo apenas se alguém morrer em sua vez; todos recusam exceto a mulher, Alceste". É essa a história contada em mais um livro incômodo de Gonçalo M. Tavares, mais prolífico e multifacetado dos escritores portugueses (autor de mais de 30 livros traduzidos em 46 línguas).

Tomando por base o drama "Alceste", de Eurípedes, Tavares narra a história do pobre Admeto em versos brancos, buscando compreender questões essenciais. Por que alguém é escolhido para ser sacrificado? Por que alguém desejaria tomar seu lugar? Existe ética em trocar um holocausto por outro? Qual o valor da vida de um velho? Perguntas nada fáceis, às quais Tavares nos responde com criatividade e desconcertante senso de absurdo. (RONALDO BRESSANE)

AUTOR: Gonçalo M. Tavares
EDITORA: Foz
QUANTO: R$ 24,90 (88 págs.)
AVALIAÇÃO: muito bom

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A VIDA PECULIAR DE UM CARTEIRO SOLITÁRIO

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A ficção atual pouco tem abordado o cotidiano canino de empregos desgraçados, como o dos carteiros. A classe média literária também é medíocre em seu interesse pela alteridade que é o próprio cerne da literatura. Quando o faz, como nesta novela do canadense Denis Thériault, é sob perspectiva edulcorante, quase de conto de fada, ao modo de "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", aquele filme de Jean-Pierre Jeunet que deveria ser proibido para diabéticos.

Bilodo é carteiro e está chateado, pois a vida de agente dos correios nunca foi tão chata: não há mais ataques de índios às diligências, nem sequer de um mero poodle. Pior: as pessoas não trocam mais cartas, restando apenas malas diretas comerciais a entregar. Um dia, porém, ele intercepta a carta de amor de um poeta que usa haicais para seduzir a amada. Bilodo se apaixona pela linguagem e pela destinatária, Ségolène. O livro por aí vai, até (muito cedo) deixar de ir. (JOCA REINERS TERRON)

AUTOR: Denis Thériault
TRADUÇÃO: Daniela P. B. Dias
EDITORA: Casa da Palavra
QUANTO: R$ 34,90 (128 págs.) e R$ 24 (e-book)
AVALIAÇÃO: ruim

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TUDO QUE É

Salter, morto em junho aos 90, pertencia à rara categoria de escritores longevos a ponto de se tornarem clássicos em vida, e mais, de inventarem ficções —no caso, congeladas na Segunda Guerra, espécie de crisol poético de suas obras— que acabaram por adquirir inadvertidamente aspectos de narrativa histórica, ainda que produzidas nos dias de hoje.

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"Tudo que É", seu último romance, após 34 anos dedicados aos contos, aos roteiros e à autocomiseração (lamentava nunca ter atingido o grande público, apesar de mestre elogiado pela crítica e por seus pares), é uma despedida à altura de romances como "Um Esporte e um Passatempo", único traduzido aqui, em 1997, e das obras-primas "Light Years" (1975) e "Solo Faces" (1979), ainda inéditas.

Das batalhas no Pacífico à trincheira editorial em Nova York, a vida de Phillip Bowman se divide, como a da maioria, entre amores e ódios, alegria e tristeza. A poderosa visualidade da escrita de Salter amarra tudo com adjetivos tão precisos quanto reluzentes. Superou papa Hemingway, de quem é herdeiro estilístico. (JOCA REINERS TERRON)

AUTOR: James Salter
TRADUÇÃO: José Rubens Siqueira
EDITORA: Companhia das Letras
QUANTO: R$ 44,90 (376 págs.)
AVALIAÇÃO: ótimo

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NÃO HÁ LUGAR PARA A LÓGICA EM KASSEL

Para resenhar este e outros livros de Enrique Vila-Matas, seria necessário imitar sua linguagem, pois ela é tudo na obra do espanhol, cujo estilo é marcado pela digressão. O espaço disponível, porém, não chega para isso. Em Vila-Matas, o leitor dominou o escritor e fez dele seu fantoche, como um ventríloquo se utiliza do boneco para falar.

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Neste novo livro —na verdade, o mesmo livro contínuo que vem escrevendo desde que a ficção se mesclou à não ficção, em "Bartleby e Companhia" (2004), gerando algo entre a crônica de viagem e o ensaio—, Vila-Matas é convidado a participar da Documenta de Kassel, e os curadores o querem num restaurante chinês ao longo de 30 dias, a escrever diante do público que mordisca rolinhos primavera e interpreta biscoitos da sorte.

A situação inquietante resulta em devaneios inesperados e divertidos. Como César Aira e Mario Levrero em sua última fase, Vila-Matas escreve ensaios que disfarça de romances para que não o tomem por louco. (JOCA REINERS TERRON)

AUTOR: Enrique Vila-Matas
TRADUÇÃO: Antonio Xerxenesky
EDITORA: Cosac Naify
QUANTO: R$ 49 (288 págs.)
AVALIAÇÃO: ótimo

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UM GRÃO DE TRIGO

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O queniano Ngugi wa Thiong'o consegue, neste que foi seu terceiro romance, um feito admirável. Nascido em 1938, ele viveu mais de duas décadas sob o domínio britânico. Publicado em 1967, apenas quatro anos após a independência do país, o livro é um acerto de contas com os colonizadores e o povo queniano, na sua luta pela liberdade e nas inevitáveis histórias de conflitos e traições.

Num texto escrito como se da voz coletiva do povo, alterando sutilmente os focos narrativos, percebemos como Thiong'o domina a tradição literária anglo-saxã e faz dela sua ferramenta para compor um enredo onde a cultura africana se mostra consistente, articulada e complexa, mesmo após décadas de dominação, trabalho forçado e penúria.

E o faz utilizando-se, eis o golpe maior, as armas literárias de seu dominador. O romance ecoa brilhantemente a parábola do evangelho de João que diz: "Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto". (ROBERTO TADDEI)

AUTOR: Ngugi wa Thiong'o
TRADUÇÃO: Roberto Grey
EDITORA: Alfaguara
QUANTO: R$ 49,90 (304 págs.)
AVALIAÇÃO: ótimo

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FRONT ANTIBELICISTA

Os escritores Andreas Latzko (1876-1943) e Frederic Manning (1882-1935) lutaram na Primeira Guerra Mundial, em lados opostos. Latzko serviu como oficial do exército austro-húngaro e Manning como soldado raso do exército britânico. Não se conheceram no campo de batalha, mas compartilhavam a mesma ojeriza antibelicista. Essa aversão rendeu dois livros marcantes sobre o conflito: "Homens em Guerra", de Latzko, e "Soldados Rasos", de Manning.

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A coletânea "Homens em Guerra" foi publicada em 1917, anonimamente. Censurado nos países em conflito, o livro reúne seis contos que misturam memória e ficção. Latzko viveu as cenas demoníacas descritas nessas narrativas. Seus personagens torturados são assombrações persistentes, parte de um transtorno psiquiátrico disparado no front.

O romance "Soldados Rasos", de Manning, foi publicado em 1929, quase anonimamente. Saiu assinado por Soldado Raso 19022, essa era a identificação militar do autor durante a guerra. Sua narrativa mais serena, sem lances dramáticos, denuncia a banalização da violência oficializada. No prefácio, o crítico Simon Caterson afirma que nesse romance "Manning antecipa Camus e os existencialistas". (NELSON DE OLIVEIRA)

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HOMENS EM GUERRA
AUTOR: Andreas Latzko
TRADUÇÃO: Claudia Abeling
EDITORA: Carambaia
QUANTO: R$ 69,90 (160 págs.)
AVALIAÇÃO: muito bom

SOLDADOS RASOS
AUTOR: Frederic Manning
TRADUÇÃO: Fal Azevedo
EDITORA: Carambaia
QUANTO: R$ 89,90 (480 págs.)
AVALIAÇÃO: muito bom


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