Folha de S. Paulo


Livro contrasta movimentos de personagens à imobilidade social do país

Entre as mais coerentes carreiras literárias de autores brasileiros contemporâneos em andamento, a de Luiz Rufatto é constituída por um único livro distribuído em vários volumes, alguns deles com função basilar.

É o caso da novela "De Mim Já Nem Se Lembra", ora republicada em "segunda edição revista, ampliada e definitiva", e também do premiado romance "Eles Eram Muitos Cavalos", de 2001. Nesses livros, movimentos pendulares de personagens que partem da Cataguases natal do autor, em direção aos grandes centros industrializados, estabelecem o norte ético de uma obra que contrasta o deslocamento -físico, geográfico, ideológico- à imobilidade social imposta às classes desprivilegiadas do país.

Luis Ushirobira/Valor/Folhapress
O escritor mineiro Luiz Ruffato
O escritor mineiro Luiz Ruffato

A nova empreitada, publicada em versão original em 2007 após encomenda editorial, atesta que nem esse tipo de demanda desvia Ruffato de seu mundo singular. Algo idêntico ocorreu com a entrega posterior de "Estive em Lisboa e Lembrei de Você", de 2010, integrante do projeto Amores Expressos, na qual o cataguasense Serginho se manda para Lisboa a fim de se livrar do vício do tabagismo e de dissipar suas fumaças existenciais no estrangeiro.

Em tais histórias, sempre há alguém que parte à procura de vida melhor e cujos regressos são breves e infrequentes; como bons migrantes, os personagens quedam-se a meio caminho, nem cá nem lá, anunciando a despedida definitiva, sempre adiada, pela previsível inadequação do próprio destino.

Em "De Mim Já Nem Se Lembra", os fios que se esgarçam até o rompimento são dois: primeiro, o de Luiz Ruffato, ou Luizinho, caçula narrador que, ao retornar a Minas Gerais em 2001 para o funeral da mãe, depara-se com o maço de 50 cartas escritas pelo segundo, o primogênito José Célio, morto em acidente de automóvel em 1978: "Sob a cama-de-casal, uma pequena e ignorada caixa retangular de madeira. Puxei-a, depositei-a na colcha-de-chenil e, ao abri-la, interromperam-se os preparativos da pachorrenta segunda-feira: ali, minha mãe abrigara seu coração esfrangalhado".

Dono de fatura inventiva e minúcia vocabular, Ruffato abre o relato com uma "explicação necessária" à guisa de introdução, abrindo portas ao leitor para a casa da mãe em vias de se extinguir. A linguagem aqui é tão bela quanto anacrônica: fala estilizada de um lugar onde ninguém mais tem nada a dizer, dialeto do passado familiar e das origens que, a partir da morte dos mais velhos, será carregado por quem deixou para trás a cidade natal.

O narrador se depara com luto imenso: o da mãe que acaba de falecer, do irmão que partiu para São Paulo e morreu na tentativa de retornar, das coisas do passado que desaparecem rapidamente e ele tenta capturar por meio de palavras, como borboletas esvoaçantes no quintal.

A segunda parte do livro é composta pelas cartas de José Célio, narrando seus progressos de ex-aluno do Senai na indústria metalúrgica de Diadema. Lê-se apenas a voz do rapaz que migrou para a periferia crescente da São Paulo tentacular ainda engatinhando nos anos 70, e aquilo que não é dito -pelo autor das cartas, à procura de poupar a mãe da angústia, e pela própria mãe, pois não temos acesso às suas respostas- é tão ou mais importante do que aquilo que é; para além das primeiras desventuras amorosas, das promoções na firma e do cotidiano da pensão onde vive no Ipiranga, soa o rumor grave da história recente do país: do regime militar, de conflitos com a irmã e com a namorada que se liberam sexual e profissionalmente, e o envolvimento com o cunhado sindicalista. O ambiente operário do ABC e o surgimento dos movimentos sindicais que culminariam na fundação do PT são ensaiados nas entrelinhas.

O tom das cartas de José Célio é marcadamente ingênuo e algo sentimental, resultando -embora imensa tristeza atravesse o livro- no contraste com a sordidez do painel fragmentário da metrópole degradada de "Eles Eram Muitos Cavalos", como se antecipasse o inevitável fracasso da sociedade brasileira ao flagrar um antes e um depois da abertura política que culminou na Nova República.

DE MIM JÁ NEM SE LEMBRA
AUTOR Luiz Ruffato
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 34,90 (144 págs.) e R$,23,90 (e-book)


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