Folha de S. Paulo


Primeiro disco de inéditas de Elza Soares reafirma sua versatilidade

Há um pouco de Elza Soares em cada personagem de "A Mulher do Fim do Mundo", primeiro disco só de inéditas da artista, que pode ser considerada a dona de uma das vozes mais versáteis da música brasileira. Ela anuncia a sua chegada —ou seria renascimento?— à capela, na abertura, com "Coração do Mar", um poema de Oswald de Andrade musicado por José Miguel Wisnik. A introdução é delicada, mas ainda assim crua, concreta. A relação com o urbano, explícita na arte da capa, áspera e marcante, vai se tornando mais clara à luz da faixa-título. Na composição de Romulo Fróes e Alice Coutinho, a pele preta e a voz, deixadas na avenida, ecoam a mensagem definitiva: "Eu vou até o fim cantar".

Stephane Munnier
A cantora Elza Soare Foto: Stephane Munnier ****NAO UTIIZAR SEM AUTORIZACAO**** ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
A cantora Elza Soares

O 34º álbum da artista, protagonista de uma carreira de 55 anos e uma história de vida marcada por muitas reviravoltas, reúne um grupo de artistas da vanguarda musical paulistana idealizado especialmente para o projeto pelo produtor e baterista Guilherme Kastrup. O núcleo criativo é formado por Kiko Dinucci (guitarra), Marcelo Cabral (baixo), Rodrigo Campos (guitarra), Felipe Roseno (percussão), Celso Sim e Romulo Fróes (direção artística), um conjunto de músicos e compositores ousados que levam a intérprete até o limite, num cruzamento de gêneros que passa pelo samba, rock, rap e música eletrônica.

Nesse cenário apocalíptico, "Maria da Vila Matilde", de Douglas Germano, traz à tona a mulher que reage às agressões do companheiro, enquanto um jogo de guitarras ruidosas pontua o relacionamento cheio de tensão e ameaças. "Luz Vermelha", de Kiko Dinucci e Clima, pinta um quadro infernal em que Elza profetiza: "Bem que o anão me contou/ Que o mundo vai terminar/ Num poço cheio de merda". Sem censura ou qualquer amarra, o tesão escorre como lava no samba "Pra Fuder", outra composição de Dinucci, em que a banda conduz a um transe repleto de volúpia com arranjo de naipe assinado por Thiago França e Bixiga 70.

Em "Benedita" (Celso Sim, Pepê Mata Machado, Joana Barossi e Fernanda Diamant), Elza encarna a transexual que "leva o cartucho na teta", assim como a marca da violência da vida nas ruas de qualquer metrópole de terceiro mundo. A aspereza do cotidiano ganha uma abordagem carinhosa na crônica de Rodrigo Campos e seu linguajar das quebradas paulistanas em "Firmeza?!", em que o músico trava um encontro casual com a cantora. A marca registrada do compositor também aparece em "O Canal", em que arranjos orientais guiam almas perdidas.

A solidão encontra um retrato minimalista com violão de sete cordas, flauta e violinos em "Solto", de Marcelo Cabral e Clima: "Solto/ Quase outro/ Corpo". "Comigo", parceria de Romulo Fróes e Alberto Tassinari, anuncia o encerramento do disco como uma oração. Ao longe, ainda é possível ouvir a voz da cantora ecoando, mesmo depois do final da música. Elza Soares insiste, resiste, renasce mais uma vez. E nos lembra de que, às vezes, ter a coragem de se reinventar pode ser a única saída.

A Mulher do Fim Do Mundo
ARTISTA: Elza Soares
GRAVADORA: Circus/Natura Musical
QUANTO: R$ 32,90 (CD) / audição gratuita em naturamusical.com.br
AVALIAÇÃO: ótimo


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