Folha de S. Paulo


Escritora brasileira traça paralelo entre Frankenstein e transgênicos

Anatomia do Paraíso

O confronto é um lugar confortável para a ficção de Beatriz Bracher, dos traumas do romance "Não Falei" às tretas de "Cronicamente Inviável", filme de Sergio Bianchi roteirizado por ela. Neste romance, ao conflito social, perene em sua obra, adicionam-se embates entre corpo e alma, ideal e "real". O espaço é Copacabana, bairro carioca definido pelo confronto entre classes.

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Anatomia do Paraíso, por Beatriz Bracher
Anatomia do Paraíso, por Beatriz Bracher

Félix é um estudante de letras, epiléptico, classe média, branco, bissexual, obcecado por sexo e pelo "Paraíso Perdido", poema de John Milton sobre o qual escreve uma tese. Vanda é legista no IML, trabalha também numa academia de ginástica, é negra, de classe baixa e está grávida -até o último dia de gestação desfila seu bebê entre cadáveres-, mas não sabemos quem é o pai de sua criança.

Dois personagens tão dessemelhantes —quanto Adão e Eva, ou quanto Lúcifer de Deus- convivem no mesmo prédio; um incidente os aproxima. A voz dura de Beatriz, no presente, às vezes deixa que algum lirismo faça respirar a narrativa. Um livro perturbador —como devia ser o mundo, antes da queda do anjo. (RONALDO BRESSANE)

AUTOR: Beatriz Bracher
EDITORA: 34
QUANTO: R$ 46 (328 págs.)
AVALIAÇÃO: muito bom

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Testemunho Transiente

Em 1999, começaram a chegar ao mundo os recados de um garoto cabeçudo e estranho, assim como pareciam incomuns fragmentos, contos, monólogos e poemas que compunham a tetralogia ora reunida em "Testemunho Transiente".

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Testemunho Transiente, por Juliano Garcia Pessanha
Testemunho Transiente, por Juliano Garcia Pessanha

Ao lê-los, o leitor pode se imaginar sentado numa clareira diante de Garcia Pessanha, absorvendo seu pensamento, sua poética embebida em Heidegger e Kafka, em Herberto Helder e Paul Celan. Se termos e conceitos da filosofia tornam algumas passagens áridas, a dificuldade resulta em recompensa explicitada em dedicatórias a amigos e mestres, com a ânsia de seu autor em compartilhar a questão: que "cazzo" estamos fazendo neste lugar?

A edição atual, se traz a vantagem de reunir a tetralogia, também carrega certo apelo canonizador que prejudica, ou posterga, a imersão imediata na leitura. Deixe prefácios e posfácios para depois e obedeça a bula de Jean-Claude Bernardet na contracapa, afundando "nas areias movediças e fascinantes do texto", afundando "até sobreviver". (JOCA REINERS TERRON)

AUTOR: Juliano Garcia Pessanha
EDITORA: Cosac Naify
QUANTO: R$ 42,90 (320 págs.)
AVALIAÇÃO: ótimo

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Luxúria

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Luxúria, por Fernando Bonassi
Luxúria, por Fernando Bonassi

A gente nunca sabe como é que certa coisa começou até que ela se converte em segunda pele —e dela não se consegue escapar. É a prisão que envolve o "homem de que trata este relato", anônimo protagonista, um metalúrgico filho de metalúrgicos, que vive em uma casa financiada, tem um automóvel cujo financiamento ainda paga, eletrodomésticos financiados, e resolve financiar a construção de uma piscina â€”sonho que poderá afogá-lo.

A ascensão da classe C, a euforia da era Lula, que levou o país a ocupar o sexto lugar entre as economias do planeta (a essa altura já devemos ter caído para o nono), e a escalada política das igrejas neopentescostais são os panos de fundo de "Luxúria", retorno de Fernando Bonassi ao romance após uma década (em que esteve mais ligado a TV, cinema e teatro).

A ironia dura e o realismo atroz enquadrados por Bonassi tornam a leitura do romance às vezes irrespirável —e só piora notar que aquele sonho brasileiro, tal como a piscina do protagonista, deu com os burros n'água. (RB)

AUTOR: Fernando Bonassi
EDITORA: Record
QUANTO: R$ 40 (368 págs.) e R$ 28 (e-book)
AVALIAÇÃO: muito bom

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Associação Robert Walser Para Sósias Anônimos

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Associação Robert Walser para Sósias Anônimos, por Tadeu Sarmento
Associação Robert Walser para Sósias Anônimos, por Tadeu Sarmento

Eis um romance que não quer enganar o leitor, fazendo-o pensar que está vendo a vida em vez de lendo. "Associação Robert Walser", nesse sentido, é macedoniano (de Macedonio Fernández, que pretendia ganhar o leitor como personagem). É também levreriano (de Mario Levrero que, ao escrever sem planos, acreditava sentir de novo "o velho sabor da aventura literária na garganta").

Todos os habitantes da cidade paraguaia de Nueva Königsberg são sósias de Immanuel Kant e nazistas procurados. E o clube que intitula o livro, liderado por Hussein, reúne humoristas que assumiram identidades de anônimos. Mas para que isso, você se pergunta? Para o leitor dar risadas e ser feliz, claro, ao menos na ficção.

Nascido em 1977 no Recife, Tadeu Sarmento está entre os grafômanos mais contumazes de sua geração. O Prêmio Pernambuco de Literatura celebrou essa devoção literária, viabilizando sua estreia no romance após ele ter publicado contos e poemas. (JOCA REINERS TERRON)

AUTOR: Tadeu Sarmento
EDITORA: Cepe
QUANTO: R$ 25 (226 págs.)
AVALIAÇÃO: bom

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As Vidas e as Mortes de Frankenstein

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As Vidas e as Mortes de Frankenstein, por Jeanette Rozsas
As Vidas e as Mortes de Frankenstein, por Jeanette Rozsas

A releitura de um clássico é sempre empreitada de alto risco: o original fica como sombra ameaçadora e raramente superada, ou o resultado pode ser um texto de popularização, para facilitar ou atrair leitores jovens, como nas adaptações.

O romance de Jeanette Rozsas escapa desses modelos ao realizar um diálogo interessante, em três frentes, com a narrativa gótica de Mary Shelley, escrita entre 1816-17, quando a autora tinha apenas 19 anos e que muitos consideram a primeira obra de ficção científica escrita.

Rozsas entrecruza a história de Shelley, no século 19, com a do alquimista Johann Konrad Dippel em busca do elixir da longa vida, no século 17, e a saga de uma cientista brasileira na Alemanha da atualidade, Elizabeth Medeiros, às voltas com pesquisas sobre transgenia.

Do conhecimento científico antigo à moderna tecnologia, a autora elabora uma engenhosa trama de suspense ancorada em nossa obstinada luta contra a morte, valendo-se de pesquisas exaustivas e sem tropeçar em clichês. (REYNALDO DAMAZIO)

AUTOR: Jeanette Rozsas
EDITORA: Geração
QUANTO: R$ 23 (176 págs.)
AVALIAÇÃO: muito bom

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Só Faltou o Título

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Só Faltou o Título, por Reginaldo Pujol Filho
Só Faltou o Título, por Reginaldo Pujol Filho

O Homem do Subsolo está de volta, disparando contra qualquer coisa que se mova. Seu nome é Edmundo, vive em Porto Alegre e sua fala é tão cínica e azeda quando a do personagem de Dostoievski. É a "voz raivosa", categoria literária que trouxe fama a Nietzsche ("Assim Falou Zaratustra"), Graciliano ("Angústia"), Campos de Carvalho ("A Chuva Imóvel") e outros maravilhosos misantropos.

As frustrações de Edmundo, escritor pernóstico em guerra contra o mercado editorial, escorrem num monólogo venenoso. O lado pior do casamento, do trabalho e da "intelligentsia" brasuca é exposto numa fala ininterrupta e mesquinha. Paralelamente às lembranças amargas do narrador, sucedem-se os depoimentos num julgamento por assassinato.

A paródia de linguagem protocolar, cheia de mesóclises e torções sintáticas, diverte, mas no final cansa. Se fosse mais curto —estou pensando em cem páginas a menos—, o romance de Reginaldo Pujol Filho seria perfeito.

Fico imaginando o que o próprio Edmundo diria sobre isso... (NELSON DE OLIVEIRA)

AUTOR: Reginaldo Pujol Filho
EDITORA: Record
QUANTO: R$ 45 (322 págs.)
AVALIAÇÃO: bom

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Cidadania da Bomba

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Cidadania da Bomba, por Pádua Fernandes
Cidadania da Bomba, por Pádua Fernandes

Em sua estreia na ficção breve, Pádua Fernandes denuncia, com humor negro, o racionalismo selvagem de nossa sociedade beligerante. Em 24 contos, o Brasil inteiro —nossos desejos e crenças, nossas teorias e práticas— explode na cara do leitor. É uma explosão jocosa, de confete e serpentina, como nos melhores espetáculos circenses. Quando acaba, ficamos com cara de bobo.

A fala esperta de "Cidadania da Bomba" ironiza o cinismo jurídico, a tautologia acadêmica, o satanismo político, a babel das redes sociais, a demagogia dos literatos e por aí afora. De nossas boas intenções sociais, todas falsas, não sobra nada.

Num dos contos ("Teoria da Nação"), o autor ironiza até a "fala esperta" do intelectual enrolado que, tentando refletir sobre as demandas do país, se perde num logocentrismo cômico. Em "Grito Adentro", outra ficção imperdível, encontramos a representação perfeita da paralisia cognitiva que ainda nos mantém deitados num leito esplêndido da UTI global. (NELSON DE OLIVEIRA)

AUTOR: Pádua Fernandes
EDITORAS: Patuá (impresso) e e-galáxia (e-book)
QUANTO: R$ 36 (128 págs.) e R$ 7,90 (e-book)
AVALIAÇÃO: muito bom

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Sombras de Reis Barbudos

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Sombras de Reis Barbudos, por José J. Veiga
Sombras de Reis Barbudos, por José J. Veiga

É muito bem-vinda a recuperação de José J. Veiga em andamento pela Companhia das Letras. O goiano, em sua própria definição um "caçador do diferente em literatura", foi responsável pela ruptura com o pacto realista, segundo Antonio Candido, "graças à injeção de um insólito que de recessivo passou a predominante".

Publicado originalmente em 1972, o romance "Sombras de Reis Barbudos" está entre os melhores e menos datados livros que exploraram a alegoria para abordar o contexto político brasileiro de então. Parte considerável da responsabilidade de sua sobrevivência se deve à hábil mescla de romance de formação com ficção distópica.

Numa pequena cidade, o adolescente Lucas registra a chegada da Companhia Melhoramentos Taitara, símbolo da industrialização. Em pouco tempo, a empresa muda o lugar, impondo restrições. O clima, novamente em definição de Candido, é de "tranquilidade catastrófica". Se alguém aí lembrou da sombria e ensolarada Cubatão do milagre econômico, acertou. (JOCA REINERS TERRON)

AUTOR José J. Veiga
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 34,90 (152 págs.) e R$ 23,90 (e-book)
AVALIAÇÃO: bom

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Navios Iluminados

A prosa do escritor sergipano Ranulfo Prata (1896-1942) é cristalina, rigorosa, tensa, enxuta e lembra o estilo de grandes mestres da literatura brasileira como Graciliano Ramos, Dyonélio Machado, Otto Lara Resende e Raduan Nassar.

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Navios Iluminados, por Ranulfo Prata
Navios Iluminados, por Ranulfo Prata

Como Dyonélio, Pedro Nava e Moacyr Scliar, Prata era médico e trabalhou no Rio de Janeiro e em São Paulo até fixar-se em Santos, onde buscou inspiração e informações para escrever "Navios Iluminados", pequeno drama cotidiano de um trabalhador miserável, vindo do interior da Bahia para tentar a vida na cidade portuária. Iludido com as oportunidades de trabalho, José Severino arruma emprego na Companhia Docas e vai engrossar a massa do proletariado urbano e o que sobra mesmo é a decepção.

Publicado originalmente em 1937 pela lendária editora de José Olympio, no começo da ditadura de Getúlio Vargas, esse romance-crônica obteve reconhecimento entre a geração de romancistas dos anos 1930 e ganhou uma tradução na Argentina. Sua reedição é mais que necessária. (REYNALDO DAMAZIO)

AUTOR Ranulfo Prata
EDITORA Edusp
QUANTO R$ 70 (312 págs.)
AVALIAÇÃO: muito bom


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