Folha de S. Paulo


Livros de ficção brasileira retratam conflitos sociais do país

AMAR É CRIME
A literatura de Marcelino Freire nasce da voz: seus contos são metáforas orais de personagens que vivem à margem do Brasil, espectros que nunca são ouvidos, histórias que desinteressam tanto a casa grande quanto a senzala. Fala de conflito de classes, sim; no entanto, longe de tomar partido, prefere observar ambiguidades, contradições −que tornam o mítico "brasileiro cordial" o campeão mundial em linchamentos (47 mil assassinatos por ano, um recorde).

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Nesta reedição de sua reunião de contos "Amar É Crime", o escritor pernambucano dá voz a garotas de programa, gays pais de família, professoras lésbicas, pastores evangélicos tarados, políticos vampiros de miseráveis, miseráveis vampiros de políticos.

Prosa original, estruturada em trocadilhos, aliterações, rimas, assonâncias e outros atributos próprios à poesia e a palavra cantada, a literatura de Freire é das mais imediatamente identificáveis. Há humor, mas não há boas intenções. E há melancolia, além da busca pela beleza —nem que seja um vestido chique lavado com água da sarjeta. Com relatos que rimam amor e horror, o pernambucano Freire escancara um país que não ousa se olhar no espelho. (RONALDO BRESSANE)

AUTOR: Marcelino Freire
EDITORA: Record
QUANTO: R$ 30 (147 págs.) e R$ 21 (e-book)
AVALIAÇÃO: ótimo

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COMO O DIABO GOSTA
Ainda há muito a investigar do desbunde dos anos 1970 a rebolar sob as trevas e a modorra da ditadura —e é sobre isso este romance do gaúcho Ernani Ssó. Qual um Reinaldo Moraes dos pampas, Ssó prefere investigar a vida de pau em riste, nessa espécie de "conficção" de seus loucos anos.

Assim, de sacanagem em sacanagem, de bairro em bairro, de papo furado em papo furado, vai se construindo a narrativa multifacetada —ou confusa, depende do seu ponto de vista− de Camilo, um escritor sem eira nem beira, que se apega às múltiplas musas que teve na vida para tentar escrever uma história.

Entre o cinismo e a verborragia, a narrativa se tece com humor, como se um causo desaguasse em piada e daí em desconsolo niilista. Em tempos tão realistas, não deixa de ser divertido um livro que abole qualquer apego ao lugar-comum das histórias bem contadas e abraça o caos. (RB)

AUTOR: Ernani Ssó
EDITORA: Cosac Naify
QUANTO: R$ 34,90 (288 págs.)
AVALIAÇÃO: muito bom

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TIJUCAMÉRICA
Quem tem o hábito de acompanhar o jornalista carioca José Trajano, em programas esportivos na televisão, já está acostumado com sua verve ferina e inteligência, com seus comentários e críticas sutis, que fogem ao ramerrão do óbvio ululante. Torcedor fanático e resistente do América do Rio de Janeiro, time que há muito tempo abandonou a primeira divisão do futebol regional e nacional, decidiu vingar-se do destino e escrever uma fábula bem-humorada para celebrar poeticamente o retorno do "Ameriquinha", como gosta de dizer, ao lugar que lhe é devido na tradição.

Evocando forças do além, divinas ou diabólicas (quem saberá?), Trajano imagina a ressurreição de craques de todos os tempos num escrete imbatível, pronto para comer a bola num Maraca idílico -aquele que poderia ser a arena das verdadeiras pelejas de titãs e não o empreendimento imobiliário para escoamento de corrupções várias. Grandes partidas são recontadas e o autor soube fundir a alma do torcedor com a do cidadão da Tijuca, numa simbiose que só a paixão explica. (REYNALDO DAMAZIO)

AUTOR: José Trajano
EDITORA: Paralela
QUANTO: R$ 24,90 (216 págs.) e R$ 16,90 (e-book)
AVALIAÇÃO: muito bom

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A IMAGINÁRIA
A crescente valorização internacional da obra de Clarice Lispector parece ter atraído interesse editorial na recuperação de autoras de sua geração. É o bem-vindo caso de Adalgisa Nery (1905-1980), cuja obra permanece esquecida há décadas. A recuperação, aqui, atende à velha máxima: o real valor literário de um escritor só pode ser estabelecido após a morte de amigos e inimigos.

Casada aos 16 anos com o guru modernista Ismael Nery (1900-1934), mãe de sete filhos (apenas dois sobreviventes) e viúva aos 29, Adalgisa biografa, em "A Imaginária", a própria penúria de mulher de artista, retratado como narcisista e adepto da brutalidade psicológica, cujos ideais modernos começavam da porta de casa para fora.

Romance de formação e terror conjugal (a cena de sexo com o marido tuberculoso tira sono até de um cadáver), o estilo empostado da autora, marcado por "meu ser" e "minha alma" a cada página, envelheceu mal. Não é Clarice, mas vale resgate para juízo da posteridade. (JOCA REINERS TERRON)

AUTOR: Adalgisa Nery
EDITORA: José Olympio
QUANTO: R$ 352 (400 págs.)
AVALIAÇÃO: bom

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REBENTAR
"Nem mesmo nas mitologias mais cruéis há tragédia equivalente" a ter um filho desaparecido. É por esse calvário que atravessa a personagem principal do primeiro romance de Rafael Gallo, autor que venceu o prêmio Sesc de Literatura em 2011 com o livro de contos "Réveillon e Outros Dias".

Ângela perdeu-se do filho de cinco anos numa galeria de lojas. Trinta anos depois, ainda está às voltas com buscas em abrigos de moradores de rua e necrotérios, atrás de pistas de seu paradeiro. O livro, que se desenrola no período de um ano, lentamente nos faz repassar a repetição torturante de perguntas que devem preencher a vida de quem tem um filho desaparecido: onde ele estará? será que se lembra dos pais? e, se reaparecer, haverá meios de se reparar os danos e culpas acumulados em tantos anos?

O resultado é um livro perturbador, que se aproxima da dor da personagem de maneira convincente e revela um escritor que, embora jovem, mostra-se à altura do desafio. (ROBERTO TADDEI)

AUTOR: Rafael Gallo
EDITORA: Record
QUANTO: R$ 45 (378 págs.) e R$ 29,45 (e-book)
AVALIAÇÃO: muito bom

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EU SOU FAVELA
Bela e sóbria edição brasileira traz de volta esta antologia de contos de escritores brasileiros, originalmente publicada na França em 2011 pela editora francesa Paula Anacaona.
A seriedade de propósitos editoriais e estéticos que se explicitam na "Apresentação" da organizadora e a qualidade literária dos contos -ainda que variável− legitimam amplamente a iniciativa.

Chama a atenção que não se procure apresentar perfis e extração social dos nove autores, circunstanciando suas trajetórias literárias. Assim, o título escolhido repõe inteligentemente a velha máxima flaubertiana ("Madame Bovary sou eu") e desloca para as mediações especificamente literárias a representatividade das obras.

Nesse sentido, ganham destaque os contos de João Anzanello Carrascoza, Marçal Aquino, Victoria Saramago e Ronaldo Bressane, que dão forma a situações e sentimentos singulares, distantes da lógica, supostamente mais abrangente, da explicitação de causas e consequências das questões sociais implicadas. (Roberto Alves)

AUTORES: vários
ORGANIZAÇÃO: Paula Anacaona
EDITORA: Nós
QUANTO: R$ 22 (80 págs.)
AVALIAÇÃO: muito bom


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