Folha de S. Paulo


Livro para criança não precisa ser educativo, diz vencedora do Jabuti

A vida da escritora Marina Colasanti, 77, é um livro de histórias. Começa na África, em um país chamado Eritreia, onde nasceu.

Depois, vem a Segunda Guerra Mundial e a infância na Itália. Aos dez anos de idade, ela passa a viver no Brasil, em um palacete no Rio.

Autora de poemas, crônicas e até contos de fadas, Colasanti adicionou um novo capítulo a sua vida: Ganhou o Jabuti de melhor livro de 2014 com o infantil "Breve História de um Pequeno Amor" -seu sétimo Jabuti, um dos prêmios literários mais importantes do Brasil.

"Não esperava. É raro que um livro para crianças seja considerado o melhor do ano", disse a escritora à "Folhinha". Leia abaixo a entrevista.

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Folhinha - Foi uma surpresa ganhar o Jabuti de melhor livro do ano?
Marina Colasanti - É muito raro que um livro para crianças vença como o melhor do ano. Foi uma surpresa absoluta.

O prêmio mostra uma valorização da literatura infantil?
Gostaria de dizer que sim. Mas há um certo demérito ligado à literatura infantil, como se não fosse necessário ser escritor para escrever livros para crianças. Veja uma coisa: se algum escritor brasileiro ganhasse o Nobel, todos fariam muito barulho, concorda? Porém, o Brasil já ganhou por três vezes o Hans Christian Andersen [considerado o Nobel da literatura infantil], e ninguém fala sobre isso.

Por outro lado, a literatura infantil e juvenil está na ponta mais valorizada do mercado, que tem altíssimo interesse por esse tipo de livro. Há muita demanda, muito lançamento. Mas muitas vezes sem um cuidado literário.

Como assim?
A produção de livros sofre de duas doenças. Uma é o descrédito da inteligência infantil por parte dos adultos. Eles acreditam que qualquer coisa pode ser publicada e que a criança não vai perceber que o livro é ruim. O outro problema é que a literatura infantil tem um pé amarrado na educação, como se ela servisse para carregar conhecimentos, princípios morais, como uma cápsula que tivesse outra coisa dentro. E isso envenena a literatura.

As grande obras são grandes porque escaparam disso. Por exemplo, o [Lewis] Carroll, que era um educador, não colocou nada de educativo na "Alice". Fez um baita sucesso. Toda a produção do [Carlo] Collodi é extremamente educativa, menos uma: "Pinóquio", que é uma obra genial. Esse envenenamento pela educação é um problema não só do Brasil. A literatura é formadora e ensina por si, e não por ensinamentos embutidos.

No Brasil, isso se agrava por que o maior comprador de livros é o governo?
Sim. No Brasil, a literatura chega às crianças quase que exclusivamente através da escola. Num país onde quem compra livro é o governo e os professores não costumam ler, escolhe-se obras educativas e o mais simplificadas possível. Não tem jeito.

Quando terminei "Breve História de um Pequeno Amor", fiquei com a dúvida: É um livro para criança?
Adoro quando essa pergunta aparece no fim. É o melhor atestado de qualidade que o livro pode ter. Se uma obra infantil não toca um adulto, ele também não vai tocar a criança. Eu nunca escrevi para distrair ninguém. Não sou um palhaço. Eu quero tocar, emocionar, sacudir, fazer refletir. Nada disso é possível se aquilo que você escreve não toca pontos profundos do leitor.

É possível tocar esses pontos com um pombo como personagem principal?
A criança não se identifica apenas com o "eu", como se fosse um espelho. É um erro achar que a melhor chave de leitura é a identificação. A criança busca a identidade no outro, no melhor amigo, no convívio com os irmãos. Achar que livro infantil sempre tem que ter criança é deixar a literatura mais pobre.

Quanto de realidade e quanto de ficção existe no livro?
Tudo é real! Eu tenho uma fotos do pombo pousado no meu ombro, falando no meu ouvido, recebendo comida com um palito.

A criança de hoje é muito diferente da de sua época?
A principal mudança foi a valorização do desejo da criança. A gente até podia ter vontades, mas isso não significava que seriam atendidas pelos adultos. Hoje, o desejo da criança é uma ordem. Ela quer algo e ponto. Na minha época, no máximo, a criança gostaria de alguma coisa.

Mas ela segue precisando de cuidados, com medo da morte, pavor do escuro. A criança continua a mesma, embora o cotidiano seja muito diferente.

Outra mudança foi o aparecimento do digital. Como isso se reflete na literatura?
O livro não vai acabar. O que pode mudar é a chamada sacralização do livro. Ler sempre foi um momento importante. Não sabemos se, com a popularização do digital e livros mais baratos, o valor da leitura não será quebrado. Tudo é muito recente.


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