Folha de S. Paulo


Menino voou em foguete e nunca mais voltou; releia conto da primeira 'Folhinha'

Um menino subiu em um foguete e nunca mais voltou. Vários bichos fugiram da floresta e invadiram a cidade. Um gato guloso anunciou seu noivado.

Essa e outras histórias curiosas eram contadas na coluna Histórias da Tia Lenita desde a primeira edição da "Folhinha", publicada em setembro de 1963.

Criadora e primeira editora do caderno, Tia Lenita assinou a coluna durante os dez anos em que trabalhou na "Folhinha".

Cada história era acompanhada de um desenho diferente. Muitos deles foram criados pelo cartunista Mauricio de Sousa, que ilustrou o caderno desde o primeiro número.

Leia abaixo a primeira história da Tia Lenita, sobre o menino que voou em um foguete e não voltou mais.

*

Eu sempre quis saber o que acontece aos astronautas que viajam para a Lua e não voltam mais. Como aquele caso do Eduardinho.

Ora, Eduardinho era órfão, não tinha ninguém no mundo, a não ser o velho Gusmão, que tinha a mania de construir foguetes.

Estava tão cansado de ser maltratado por todos. Trabalhava dias inteiros entregando sacas de carvão. À tarde, ficava pretinho, pretinho que a gente nem podia enxergar o rosto dele.

-- Sai saí, tição! -- gritavam os meninos da rua.

-- Macaco preto! -- berravam outros.

Mas Eduardinho já não se importava. Acostumado com orfanatos desde os 2 anos de idade, aos 7 já era um menino cansado da vida. À noitinha, as coisas melhoravam um pouco. Ia visitar Gusmão e ajudá-lo na construção dos foguetes.

-- Ah! -- dizia Gusmão -- Um dia ainda hei de fazer um foguete que nem esses que andam rodando em volta da Terra. Você há de ver, menino.

-- Então por que você não faz um foguete para eu ir à Lua?

-- À Lua? -- perguntava Gusmão. E por que haveria você de querer ir à Lua?

-- Para ver se os homens de lá são melhores do que os daqui, respondeu Eduardinho com tristeza.

O velho Gusmão largou a tinta amarelo-canário com que pintava a cauda de um lindo foguete, coçou a cabeça e pensou.

-- Então, você faz ou não -- disse o menino. Não desses de mentira, que não levam a gente para bem longe. Mas um de verdade, grandão, que se perde no céu e vai até a Lua. Você faz?

-- Talvez... talvez -- respondeu o velho fazedor de foguetes.

E desse dia em diante, Gusmão não pensou noutra coisa. O que mais o preocupava era realizar o sonho do menino. E resmungava baixinho.

-- Tô velho, cansado, qualquer dia destes bato as botas. E daí? Quem vai cuidar de um menino triste e sozinho? De um menino cansado da Terra, que deseja encontrar ternura maior nos homens da Lua?

E o velho Gusmão tanto desejou fazer um foguete de verdade que acabou fazendo. Não era muito grande, não. Mas ele garantia que dava para ir à Lua. Comprou uma roupa espacial para Eduardinho, que já estava bem treinado no manejo de foguetes, e marcou o dia da partida, na praça.

A cidade inteira foi ver. O foguete desapareceu no céu, enquanto Gusmão acenava as grandes mãos e ocultava uma lágrima de lhe escorria pelo nariz grandalhão.

-- Adeus, meu filho -- disse baixinho. Sê feliz na Lua.

Eduardinho cortou os céus como um pássaro livre. Despregou uma porção de estrelinhas e guardou-as no bolso. Fez careta para um anjinho descuidado que tanto susto quase perdeu as asas. Era a alegria de deixar a Terra, os homens maus, os orfanatos, a carvoaria.

Mas o foguete não foi longe, não. Ninguém sabe por que, não chegou à Lua. Talvez porque Deus não quis. Eduardinho caiu do foguete e ficou perdido no céu.

-- Você sabe o que aconteceu com o menino? Não?

-- Virou estrela. Sim senhor. Uma estrela fulgurante na imensidão do céu.

Se você olhar o céu nas noites estreladas, poderá ver o Eduardinho feliz da vida, com sua roupa espacial, brilhando que nem uma estrela danadinha.

É o que acontece com os garotos que viajam para a Lua e não voltam mais. Viram estrela. Ah! E outras vezes, também, viram anjinho. Agora eu sei!

Reprodução
Ilustração da coluna Histórias da Tia Lenita
Ilustração da primeira Histórias da Tia Lenita

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