Folha de S. Paulo


Há 30 anos, Luis Fernando Veríssimo publicava primeiro texto na 'Folhinha'

Há exatos 30 anos, a "Folhinha" publicava na capa um texto do escritor Luis Fernando Veríssimo. Era a primeira vez que ele escreveria para o caderno.

O conto, publicado anos depois do livro "O Analista de Bagé", falava sobre uma menina que não se achava especial.

Leia a íntegra, publicada em 13 de fevereiro de 1983, abaixo.

*

UMA DAS MARIAS

Um dia, Maria chegou em casa da escola muito triste.

-- O que foi? -- perguntou a mãe de Maria.

Mas Maria nem quis conversa. Foi direto para o seu quarto, pegou o seu Snoopy e se atirou na cama, onde ficou deitada, emburrada.

A mãe de Maria foi ver se Maria estava com febre. Não estava. Perguntou se Maria estava sentindo alguma coisa. Não estava. Perguntou se estava com fome. Não estava. Perguntou o que era, então.

-- Nada -- disse Maria.

A mãe resolveu não insistir. Deixou Maria deitada na cama, abraçada com o seu Snoopy, emburrada. Quando o pai de Maria chegou em casa do trabalho a mãe de Maria avisou:

-- Melhor nem falar com ela...

Maria estava com cara de poucos amigos. Pior. Estava com cara de amigo nenhum.

Na mesa do jantar, Maria de repente falou:

-- Eu não valo nada.

O pai de Maria disse:

-- Em primeiro lugar, não se diz "eu não valo nada". É "eu não valho nada". Em segundo lugar, não é verdade. Você valhe muito. Quer dizer, vale muito.

-- Não valho.

-- Mas o que é isso? -- disse a mãe de Maria. -- Você é a nossa filha querida. Todos gostam de você. A mamãe, o papai, a vovó, os tios, as tias. Para nós, você é uma preciosidade.

Mas Maria não se convenceu. Disse que era igual a mil outras pessoas. A milhões de outras pessoas.

-- Só na minha aula tem sete Marias!

-- Querida... -- começou a dizer a mãe. Mas o pai interrompeu.

-- Maria -- disse o pai -- você sabe por que um diamante vale tanto dinheiro?

-- Porque é bonito.

-- Porque é raro. Um pedaço de vidro também é bonito. Mas o vidro se encontra em toda parte. Um diamante é difícil de encontrar. Quanto mais rara é uma coisa, mais ela vale. Você sabe por que o ouro vale tanto?

-- Por quê?

-- Porque tem pouquíssimo ouro no mundo. Se o ouro fosse como areia, a gente ia caminhar no ouro, ia rolar no ouro, depois ia chegar em casa e lavar o ouro do corpo para não ficar suja. Agora, imagina se em todo o mundo só existisse uma pepita de ouro.

-- Ia ser a coisa mais valiosa do mundo.

-- Pois é. E em todo o mundo só existe uma Maria.

-- Só na minha aula são sete.

-- Mas são outras Marias.

-- São iguais a mim. Dois olhos, um nariz...

-- Mas esta pintinha aqui nenhuma delas tem.

-- É...

-- Você já se deu conta que em todo o mundo só existe uma você?

-- Mas pai...

-- Só uma. Você é uma raridade. Podem existir outras parecidas. Mas você, você mesmo, só existe uma. Se algum dia aparecer outra você na sua frente, você pode dizer: é falsa.

-- Então eu sou a coisa mais valiosa do mundo.

-- Olha, você deve estar valendo aí uns três trilhões...

Naquela noite a mãe de Maria passou perto do quarto dela e ouviu Maria falando com o Snoopy:

-- Sabe um diamante?

Luís Fernando Veríssimo é jornalista, cartunista e escritor. O seu livro "O Analista de Bagé" ocupa, há vários meses, os primeiros lugares nas listas dos mais vendidos em todo o País.


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