Folha de S. Paulo


Eliane Brum: Sem casa, na casa da seleção

Na arquibancada da Granja Comary havia a dor de 100 mortos e mais de 20 desaparecidos. É o que perderam as 50 crianças e 30 adultos que tiveram permissão para assistir ao treino da seleção brasileira. São vítimas da tragédia de 12 de janeiro de 2011, em que as chuvas e o descaso do poder público mataram centenas. Logo na chegada da seleção a Teresópolis, ainda antes do início da Copa, Flávio Antonio da Silva, 35 anos, da Associação das Vítimas das Chuvas de Teresópolis, fez um protesto na entrada da Granja: botou uma camisa da seleção e pintou o rosto e o corpo de lama: "Aqui não é só a casa da seleção. É também a casa das vítimas". Nesta quarta-feira (25), as vítimas tiveram permissão para entrar na casa da seleção. Mas continuam sem casa.

Foi difícil escolher, entre 4 mil crianças e adolescentes vítimas das enchentes, as 50 que teriam a chance de chegar perto da seleção brasileira. "Fizemos uma escolha pela perda espiritual, primeiro. Veio quem perdeu mais gente", disse Joel Caldeira, da associação. Marcos Vinícius Lopes Ferreira, 14 anos, foi um dos escolhidos por esse critério brutal. Ele perdeu a mãe e outros 26 parentes. O pai foi soterrado por 16 horas. Marcos, arrastado por quatro quilômetros pela enxurrada. "Acordei naquela noite com o desespero do meu pai e da minha mãe. Fui arrastado, achei que ia morrer. Cada vez que tentava respirar, me afogava. Perdi a esperança. Mas me salvei", conta, a cicatriz de um dos machucados cava um pedaço do braço direito, na altura do cotovelo. Seu pai, pedreiro, ajudou a construir a Granja Comary, nos anos 80. Agora, não tem casa.

A maioria ali tem pesadelos quando chove. Dorme, sonha e acorda em sobressalto. "Nenhuma dessas crianças teve assistência psicológica", denuncia Flávio da Silva. Milena Cardoso, 16 anos, é uma delas. "Perdi sete primos, três tios e a minha bisavó. Perdi tudo. Vi minha melhor amiga morrer, a casa desabou com ela, a mãe e a avó dentro. Entrei em estado de choque, minha mãe me pegou no colo. Nos abrigamos na única casa que não foi levada. No terceiro andar, porque nos dois primeiros estavam os mortos", conta. "Não suporto Natal, não gosto de tirar férias porque na escola ainda me distraio. Fico desesperada quando chove. Choro debaixo do chuveiro pra minha mãe não ver."

Outra Milena, esta com sobrenome Almeida do Carmo, 14 anos, sonhou na noite anterior que estava no campo, "tirando foto com os jogadores e o mundo inteiro assistindo à gente". Milena já esteve antes na TV, com o mundo assistindo, mas como desespero. E é com aquela noite para sempre eterna que tem pesadelos recorrentes. "Sonho sempre que chove. Sonho que tá caindo tudo e não dá tempo de sair da cama."

São duas narrativas, fora e dentro do campo. Enquanto meninos e meninas contam uma tragédia grande demais para tão pouca vida na arquibancada, os jogadores driblam sobre o gramado. De alguma forma isso se junta. Como quando Rian Andrade, 13 anos, cochicha no ouvido da jornalista: "Vou pedir uma bola para o Neymar". Numa cadeira de rodas desde pequeno, sem movimento da cintura para baixo, Rian exibe o cabelo do Neymar: "Pintei o cabelo ontem e cortei antes de ontem". Ganhou. A bola e o autógrafo.

Manoel Antonio de Oliveira da Silva, 57 anos, mais conhecido como "Clóvis", tem intimidade com a bola. É dono de uma escolinha de futebol. Perdeu três filhos e 50 crianças de sua escola, meninos que sonhavam em estar jogando naquele campo, mas não o alcançaram. "Estamos aqui, reivindicando nossos direitos de cidadão brasileiro", diz. "Eu perdi meus filhos, mas gosto de poder falar deles. Falar deles me deixa feliz." Reconstituir a sua escola, fazer a bola rolar em pés pequenos, é também o que o mantém vivo.

Na arquibancada ao lado, o público é o habitual. Patrocinadores, convidados, amigos dos jogadores ou de alguém da CBF. Correndo, brincando com bola, vestidos com a camisa da seleção, as crianças de um lado e outro quase se misturam. Mas, quando se apresentam aos jornalistas, os meninos e meninas que se desesperam com a chuva assim se apresentam aos jornalistas: "Eu sou da tragédia". É uma identidade, assim como a camisa amarela da seleção. Quando a Copa acabar, ainda serão os da tragédia. Três anos e meio depois dela, ainda continuarão sem casa.


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