Folha de S. Paulo


Membro da Classe C torce pela seleção sabendo que Copa não é para ele

Olhando bem fundo nos olhos dela, castanho-escuros, quase pretos, não se adivinha nenhum complexo. Um psicanalista poderia perceber uns laivos de histeria na insistência de latir nas chegadas e nas saídas, como se marcando sua condição de titular na casa da periferia de Osasco, na Grande São Paulo. Há também a alegria triste que assinala aqueles que pressentem a queda logo ali e talvez por isso ela se equilibre com tanto afinco em pernas de Garrincha, só que quatro. De complexo de vira-lata, porém, ela não demonstra padecer. Pantera tem 83 centímetros do rabo ao focinho e a aparência inconfundível do mais puro DNA mestiço. Parece indiferente à incongruência entre nome e coisa nomeada. É a vantagem do vira-lata. Sem identidade gravada em pedra pela tradição, pode inventar-se e reinventar-se. Até mesmo como pantera.

A vira-latíssima é considerada a quinta filha de Hustene Alves Pereira, mais conhecido no Jardim Veloso como Pankinha. É também a única mimada, porque enquanto os outros quatro amargaram os anos em que pobre era chamado de "descamisado" (Collor), depois de "excluído" (tempos de FHC), ela é a primeira da família nascida como Classe C, migração ocorrida ao longo dos dois mandatos de Lula. Com apenas cinco anos, completados em abril, essa filha da "nova classe média" chegou quase junto com a TV tela plana 42 polegadas em que a família assistirá hoje à abertura da Copa. Pankinha, o pai, torcerá pelo Brasil e enfeitou a fachada da casa com cinco bandeiras verde-amarelas. A sexta e maior de todas só será colocada se o Brasil ganhar o hexa. Está guardada numa caixa depois de ter sido emprestada a uma amiga para os protestos de junho.

Pankinha monta álbuns de recortes sobre a vida do Corinthians há 40 anos. Registra a trajetória da seleção nessa Copa desde Mano Menezes. Quase todo dia nas últimas semanas pegou carona no ônibus para comprar e trocar figurinhas na banca, já que esse sonho de menino pobre só foi realizado agora, aos 54 anos. Qualquer um poderia pensar que ele é o maior entusiasta do grande evento, mas não. Pankinha era contra uma Copa no Brasil. Preferia saúde, saneamento e educação. É aí que entra a sua interpretação particular sobre o famoso "complexo de vira-lata". Ou, como ele diz, "a minha pequena maneira de entender as coisas".

O conceito do genial cronista Nelson Rodrigues tem estado mais presente do que chicabon na boca de integrantes do atual governo, como a própria presidente, Dilma Rousseff, e o ministro Gilberto Carvalho. Para cada crítica à Copa no Brasil, parece só haver uma interpretação possível. Acredita que Manaus tem enormes carências, mas não precisa de estádio? Complexo de vira-lata. Critica atraso ou cancelamento das obras de infraestrutura? Complexo de vira-lata. Defende que o investimento teria sido mais prioritário em escolas e hospitais? Complexo de vira-lata.

A insistência em agarrar-se a um conceito brilhante, mas que reflete um momento histórico distinto do país, parece revelar o quanto o governo, assim como parte da sociedade, debatem-se numa espécie de vazio interpretativo. Impotentes para decifrar e construir sentidos que possam dar conta da enorme mudança do Brasil explicitadas nas manifestações de junho, agarram-se às opções disponíveis. A Copa, planejada para consagrar um momento glorioso da "pátria de chuteiras", o encontro entre identidade e destino, chega hoje à apoteótica abertura entregue ao acaso do jogo além do jogo. É aí que Pankinha e Pantera podem dar uma pista.

Fellipe Abreu/Folhapress
Hustene Alves Pereira e sua cadela Pantera
Hustene Alves Pereira e sua cadela Pantera

O problema de Pankinha com a Copa no Brasil é justamente o contrário: ele tem "orgulho de ser vira-lata". Levanta-se para explicar, porque momentos como esse exigem estatura completa. "Para você ver como complexo de vira-lata é uma palavra bem complexa, é preciso entender o seguinte. Eu sou um vira-lata. O brasileiro é um vira-lata. Sou tão vira-lata quanto a Pantera. Como diz muito bem o meu filho Diego, o vira-lata é uma raça forte. Assim, ser vira-lata é um orgulho nosso. E não um complexo. Alguns anos atrás eu não tinha um dente na boca, agora eu tenho dentes. Porque minha raça vira-lata cai e levanta. É esse o problema dessa Copa no Brasil: ela não é para vira-latas. E nós, os vira-latas, sabemos disso. Nós não chegaremos perto dos estádios. Então não tem nada a ver esse complexo de vira-lata. É só que nós, os vira-latas, não estaremos lá. Esse futebol não é para nós. Isso faz com que eu deixe de torcer pela seleção brasileira? Não, mas eu torço sabendo que essa Copa não é pra mim".

A fusão entre o sonho de um estádio para o Corinthians e a Copa no Brasil possivelmente tenha soado para Lula como uma consagração simbólica e política. Mas não é assim que esse vira-lata percebe o Itaquerão nesta quinta-feira de sentidos desencontrados. Futebol, para Pankinha, é da ordem do ser. O Corinthians não é apenas o seu time, mas a sua pele. Ele a veste: não tem nenhuma roupa que não seja do Timão. Dias atrás precisou ir ao fórum e, com medo que o juiz fosse são-paulino, pediu uma camisa emprestada para o filho. Desde os tempos de office-boy, pagava carnê para a construção do estádio. Aposentado por invalidez, depois de ter o primeiro de três derrames quando trabalhava como porteiro, mesmo com o salário apertado recusa-se a comprar artigos piratas. "Para dar dinheiro ao time", explica.

Desde que o Itaquerão deixou o plano da miragem para virar quase uma hiper-realidade, porém, vive um conflito. "Corintiano sempre foi vira-lata. Favelado, pobre. E fizemos um estádio despejando outros vira-latas de suas casas. Não importa se é um barraco. A casa de alguém é onde estão as suas recordações. É o que abriga aquela pessoa do frio, do sol, da chuva. É o seu lugar. É enorme mesmo sendo pequena. Como eu vou gritar gol nessa abertura da Copa sabendo que é sobre a casa de alguém como eu?"

É hoje. Um início sem começo. Pankinha, um brasileiro vira-lata, torce pela seleção, mas não queria uma Copa no Brasil. Sonhou uma vida inteira com o Itaquerão, mas sente-se apartado dele. Pela primeira vez, decidiu não votar numa eleição.

Pantera interrompe com um latido. Talvez estranhe a bola quadrada.


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