Folha de S. Paulo


Jake LaMotta, 95, que inspirou o filme 'Touro Indomável', morre em Miami

Jake LaMotta, boxeador conhecido pelo apelido "Touro Indomável" cuja história serviu de tema a um filme muito elogiado, morreu terça-feira em Miami aos 95 anos.,

Denise Baker, sua noiva há 25 anos, informou que LaMotta, renomado pela combatividade que o conduziu a um título dos pesos médios, em uma vida de fúria descontrolada tanto no ringue quanto fora dele, morreu de pneumonia e disfagia na Palm Garden Nursing Home, onde havia sido admitido recentemente como paciente terminal.

"Garoto vagabundo e mau caráter", e com um gênio horrível, como ele se descreveria mais tarde, LaMotta aprendeu a boxear em um reformatório no interior do Estado de Nova York para onde havia sido enviado depois de uma tentativa de furto. Quando foi libertado, ele começou no boxe amador, e em 1941, ainda invicto, se profissionalizou e descarregou sua agressividade sobre dezenas de adversários no ringue.

Ele terminou por se tornar um símbolo de raiva na cultura pop quando Martin Scorsese contou sua história no filme "Touro Indomável", de 1980, baseado na autobiografia "Raging Bull", que LaMotta escreveu com a ajuda de Joseph Carter e Peter Savage nos anos 70. Robert De Niro conquistou o Oscar de melhor ator por sua interpretação de LaMotta.

No ringue, ele era capaz de absorver golpes pesados dos adversários, e de deflagrar uma barragem ainda mais brutal em resposta. LaMotta descreveu seu estilo em suas memórias: "Saía do canto, socava, socava, socava, jamais desistia, absorvia todo o castigo que o outro cara impunha e me aguentava lá, trocando golpes e mais golpes".

Ray Arcel, um dos mais renomados treinadores do boxe disse, sobre LaMotta, que "quando ele estava no ringue, era como se estivesse em uma jaula lutando pela vida".

Mais lembrado por suas seis lutas contra Sugar Ray Robinson, LaMotta venceu 83 combates (30 por nocaute) e perdeu 19 (entre os quais uma derrota arranjada que ele confessou muitas décadas mais tarde), e registrou ainda quatro empates. Conquistou o título dos pesos médios em junho de 1949, derrotando o então campeão Marcel Cerdan, e só sofreu um nocaute em suas 106 lutas.

Scorsese fez seu filme anos depois que LaMotta se viu reduzido à pobreza - apesar ter faturado US$ 1 milhão no ringue, segundo o boxeador -, e também depois de uma série de casamentos tempestuosos, de mais uma passagem pela prisão, e de LaMotta ter se tornado obeso.

"Eu diria que Jake acha que o filme é sobre ele", disse Scorsese ao "New York Times" pouco depois do lançamento de "Touro Indomável". "Mas quem pensa que esse é um filme sobre boxe perdeu o juízo. É um filme brutal, com certeza, mas é uma brutalidade que podia acontecer não só no ringue, mas no escritório e no quarto de casal. Jake é um homem elementar".

LaMotta boxeou mais de mil rounds com De Niro, treinando-o para o papel que lhe valeu um Oscar. Cathy Moriarty, em sua estreia como atriz profissional, interpretou Vikki, a segunda mulher de LaMotta, uma bela loira que teve de suportar um casamento caótico.

Os sentimentos de LaMotta sobre o filme eram contraditórios. "Eu pareço um mau sujeito, nele", disse o boxeador ao "New York Times". "Mas depois percebi que era tudo verdade. Foi como as coisas aconteceram. Eu era um bastardo imprestável. Não sou mais assim, mas era daquele jeito, então".

Giacobbe LaMotta nasceu no Lower East Side de Manhattan em 10 de julho de 1922, e tinha quatro irmãos. Ele recordou que o pai, imigrante siciliano e vendedor ambulante de frutas e verduras, costumava bater na mulher e nos filhos.

A família se mudou para Filadélfia e depois voltou a Nova York, para o Bronx, onde vivia em um cortiço infestado de ratos. LaMotta atacou com um furador de gelo colegas de escola que estavam tentando intimidá-lo, e surrou um bookmaker do bairro com um cano de chumbo de durante um assalto, deixando-o inconsciente.

Ele se tornou um dos líderes entre os pesos médios do boxe no começo dos anos 40.

Em fevereiro de 1943, causou a primeira derrota da vida de Robinson, na 41ª luta da carreira do rival, vencendo por pontos em 10 rounds depois de derrubá-lo para fora do ringue. Robinson venceu as cinco outras lutas entre os dois, mas LaMotta derrotou outros boxeadores famosos, como Fritzie Zivic, Tony Janiro e Bob Satterfield.

Al Silvani, um dos treinadores de LaMotta, sentia que seu comandado era mais perigoso quando parecia derrotado. Como Silvani relembrou em "Corner Men" (1993), de Ronald Fried, LaMotta "ficava nas cordas se fingindo de morto e de repente - e não estou exagerando - saía desferindo sete, oito, nove, 10 ganchos de esquerda no adversário".

LaMotta era o favorito para vencer Billy Fox, de Filadélfia, em uma luta de meio-pesados em novembro de 1947, mas pouco antes do combate as bolsas de apostas passaram a identificar favoritismo de três para um em favor de Fox, evidentemente porque apostadores ligados ao crime organizado de Filadélfia haviam entrado na parada. LaMotta foi surrado por Fox e a luta foi interrompida no quarto assalto.

A Comissão Atlética de Nova York investigou suspeitas de que LaMotta teria entregado a luta, mas ele disse que havia sido prejudicado por uma ruptura de baço sofrida nos treinamentos. O boxeador escapou com uma multa de US$ 1 mil e uma suspensão de sete meses por ocultar uma lesão.

Mas em 1960, quando o subcomitê antitruste e de monopólios do Senado norte-americano conduziu audiências sobre a influência do crime organizado no boxe, LaMotta admitiu ter concordado em perder para Fox em troca de uma oportunidade de disputar o título dos médios, que lhe vinha sendo negada há muito tempo. Em depoimento, ele disse que um dos homens que haviam organizado a trapaça era Blinky Palermo, empresário de Fox e supostamente líder do jogo ilegal em Filadélfia.

LaMotta teve sua oportunidade 18 meses depois da derrota diante de Fox, e venceu Cerdan com um nocaute técnico no 10º round, conquistando o título dos pesos médios, O francês Cerdan estava viajando aos Estados Unidos para uma revanche quando morreu em um acidente de avião.

LaMotta defendeu seu título com sucesso duas vezes mas em seguida foi derrotado por Robinson em 14 de fevereiro de 1951, quando sua luta no Chicago Stadium foi suspensa no 13º assalto. LaMotta estava ensanguentado e não tinha como prosseguir no combate, mas não caiu. A luta se tornou conhecida como "segundo massacre do Dia de São Valentim", uma alusão a um célebre homicídio múltiplo acontecido em Chicago em 1929.

A carreira de LaMotta declinou depois que ele perdeu o título, e em 31 de dezembro de 1952, ao final de seis meses de pausa, ele foi nocauteado pela única vez em sua carreira, por Danny Nardisco, em um combate de meio-pesados. Ele deixou os ringues mas voltou em 1954 para mais algumas lutas, antes de se aposentar em definitivo.

Sua raiva permanente o levava a espancar Ida, sua primeira mulher. Em 1946, ele voltou a se casar - a nova mulher, Vikki, ainda era adolescente - mas o segundo casamento também se deteriorou por conta das bebedeiras e infidelidades de LaMotta. Vikki pediu o divórcio em 1956. LaMotta se casou seis vezes.

Em 1957, quando dirigia uma casa noturna e bar em Miami Beach, LaMotta foi condenado por encorajar uma menor de idade a se prostituir. Ele serviu seis meses na penitenciária, trabalhando em uma equipe de construção de estradas.

Encorajado a tentar carreira no show business por Rocky Graziano, que também foi campeão dos pesos médios e se tornou ator, e era amigo de LaMotta desde o reformatório, o ex-boxeador tentou carreira como comediante e ator. Interpretou um bartender em "Desafio à Corrupção", com Paul Newman, em 1961, e um mafioso chamado Big Julie em uma produção do musical "Guys and Dolls" pelo City Center, em Manhattan.

Não havia informações imediatamente disponíveis sobre os familiares de LaMotta.

A resistência de LaMotta no ringue foi exibida em sua plenitude nas lutas contra Sugar Ray Robinson, que muita gente considera como o melhor boxeador de todos os tempos, em qualquer categoria. No segundo desses combates. Robinson acreditou que tinha esgotado o adversário, então conhecido como "Bronx Bull", mas não demorou a descobrir o contrário.

"Ele estava nas cordas", recordou Robinson em "Sugar Ray", sua autobiografia, escrita com a ajuda de Dave Anderson, colunista de esportes do "New York Times". "Estava de cabeça baixa, e eu estava de olho em uma abertura para encaixar o nocaute. Mas sua cabeça se ergueu repentinamente e ele disparou um gancho de esquerda que quase atravessou minha barriga. Doeu demais. Fiquei com lágrimas nos olhos, como um menininho. Ganhei por pontos, mas descobri que Jake LaMotta era um verdadeiro animal".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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