Folha de S. Paulo


A seleção não é minha propriedade e eu era só ferramenta, diz Bernardinho

Bernardo Rezende, 57, deixou a seleção brasileira masculina de vôlei em janeiro, mas claramente todo o sentimento reunido em 16 anos com a equipe não o deixou.

Está na fala, nos gestos, na insistência em falar do time que ajudou a chegar quatro vezes ao pódio olímpico.

"Fica faltando alguma coisa. É como um luto", resume.

Enquanto se envolve em projetos como a atuação no Conselhão do governo federal, Bernardinho continua à frente da equipe do Rexona-Sesc, do Rio, 11 vezes campeã da Superliga feminina. É um dos jeitos que
encontrou para não se afastar do vôlei.

"Eu quero morrer aqui."

O outro é ajudar o amigo Renan dal Zotto, que o sucedeu. Bernardinho garante que a troca não teve queixume -ele chegou a sugerir que seu ex-assistente, Rubinho, ocupasse a vaga.

Ele diz que o tempo à frente da seleção o deixou diferente, a ponto de perceber que ela não é sua propriedade. Confira os melhores trechos da entrevista, realizada na última quarta-feira (22).

*

Folha - Como foram as reações à sua saída da seleção?
Bernardinho - Muita gente pensou que eu tinha me aposentado. Comentam isso, acham que eu parei. De manhã cedo fui a uma consulta e um senhor me perguntou: "e aí, vai dar um passeio na praia depois?" Eu falei que não, que tinha que trabalhar.

A rotina mudou muito?
Esse período [outubro a abril] eu dedico ao clube, então eu já ficava o tempo todo com o Rexona-Sesc. Como eu hoje só colaboro com a seleção, tenho outras frentes pelas quais eu me interesso. Por exemplo, estou no Conselhão [órgão criado pelo governo federal para auxiliar o Planalto]. Quero contribuir. Mas me sinto angustiado porque, após 23 anos como técnico de seleção, a impressão é que só tenho capacidade de fazer aquilo. Que sou "só" um treinador. Então estou ansioso para me capacitar em outros assuntos.

Sem a seleção, falta algo?
Sim, é como um luto. Sinto angústia devido à ausência, à falta. Sempre se fala em renovação, e eu estava há 23 anos em seleções. A seleção não é minha. Não é minha propriedade. Eu sou uma ferramenta na história toda. É importante que haja renovação e novas contribuições. Mas é difícil. Sair foi muito complicado.

A seleção não é sua, porém o público fazia a associação.
Mas isso não é bom. As pessoas tendem a associar uma pessoa a um cargo, mas aquilo não é dela. Ele está naquilo momentaneamente, como um governador ou senador. A pessoa está, não é. Eu estive. Acho até importante a minha saída como um exemplo para mostrar que não era um feudo. Eu era parte de um projeto.

Que legado e que lição você leva destes anos de seleção?
É meio surreal. Tenho feito uma retrospectiva para um novo livro, que quero lançar no final do ano. Sempre estávamos nas finais. E, quando chegávamos em segundo lugar, havia muitas críticas. A própria Folha, na Olimpíada [do Rio], nos fez críticas veementes. É do esporte. Eu entendo que o vôlei criou uma expectativa de tal ordem que a prata não satisfazia mais. Em minhas palestras eu mostro a foto do ouro [de Atenas] e a foto da prata quatro anos depois [em Pequim]. Uma é euforia total e a outra parece um funeral, e é uma prata olímpica. A primeira geração com que trabalhei foi icônica, venceu tudo. A atual apelidei de "geração de couro".

Por que de couro?
Sempre criaram rótulos.Ouro, diamante... Eu criei esse, geração de couro. Penso que a grande motivação dessa geração que venceu os Jogos de 2016 era de provar que era digna representante do vôlei brasileiro. Era criticada quando comparada com a geração passada, chamada de inferior.

Quais as diferenças do Bernardo de 2001 para o de 2017?
Aprendi muita coisa. Um dos momentos de maior mudança aconteceu quando o Bruno [seu filho e levantador da seleção] bateu no meu quarto de madrugada em Saquarema e disse: "Pai, nós temos que mudar. É preciso mudar sua forma de tratar essa rapaziada". Era 2015. Se eu não mudasse a maneira de tratar essa geração, ela iria ficar no quase. Antes, quanto mais eu batia mais os caras reagiam, e bem. Com a turma da Olimpíada de 2016, eu precisei mudar e dar um feedback mais positivo, mais receptivo, trabalhar a autoestima. Tinha que dar um apoio maior e não cobrar o tempo inteiro. Esse foi o momento decisivo.

E isso te fez mudar?
Eu sou preocupado o tempo inteiro. Se tomei a maioria das decisões de maneira acertada? Não sei, mas vou ter de viver com elas. Mas, 16 anos depois, sou um cara diferente. Se eu não aprendi com o que vi e vivi, não adiantou nada. Perdi muito em quadra, mas a gente nunca perde se aprende.

Um único jogador ficou do início ao fim do seu ciclo.
Sim, o Serginho. Ele foi eleito o melhor jogador da Olimpíada. Ali, além de ter sido excelente, um líder na equipe, teve um prêmio à carreira dele. Isso é o verdadeiro legado olímpico. A gente fica batendo na questão das obras, mas eu acho que ele é o exemplo do que esperamos em termos de legado olímpico. Os jovens hoje vivem um momento de falta de esperança e descrença. Se eles não tiverem esperança, que futuro teremos?

A Rio-2016 acabou e muitas obras já estão abandonadas.
Foi uma linda festa que proporcionou às pessoas verem o encanto e a sedução do esporte. Mas as pessoas estão praticando mais esporte? Não sei dizer. Temos mais patrocínios? Certamente não. Por quê? Porque criou-se uma bolha pré-olímpica, que estourou no momento em que o Brasil atravessava a crise. Obviamente, as coisas se associam e os patrocinadores recuam.

O quanto a gestão do esporte no Brasil ainda é precária?
Não sei se, mesmo havendo boa gestão, os patrocinadores ficariam. Mas, muitas vezes, a caixa preta do esporte, a pouca transparência e o baixo nível de governança assustam o investidor. Fato é que as instituições têm que mudar o modelo de governança. É preciso acabar com os feudos.

Você tentaria a presidência da confederação de vôlei?
Eu quero poder ajudar pessoas boas a estarem lá, mas não sou o mais indicado. O que digo é que o sistema tem de mudar e as pessoas têm de participar mais efetivamente. Sempre alegam que são instituições privadas. Ok, mas recebem dinheiro público. Sem dinheiro público, o esporte olímpico asfixia. Portanto, o governo tem a responsabilidade de provocar e exigir um nível de governança diferente.

Quanto tempo mais você ficará no vôlei, como técnico?
Eu quero morrer aqui. Não posso ficar sem. Me faz falta demais. Até com a seleção de vez em quando eu vou lá, como consultor, dou pitacos. Mas também não quero ir muito, para não atrapalhar.

Não há rusga pela escolha do Renan para o seu lugar?
Imagina, o Renan é meu irmão. Zero vaidade. Ele que pode contar comigo sempre.

E alguma seleção do exterior?
Chance zero. A única possibilidade é ir para universidades americanas, que aliam educação e esporte. Mas não queria sair agora. Tem um time maior, que é o Brasil. E se todo mundo de bem resolve ir embora? Não pode ser.

RAIO-X

Nome completo
Bernardo Rocha de Rezende

Nascimento
25.ago.1959 (57 anos), no Rio

Formação
Economia na PUC-Rio

Família
É casado com a ex-jogadora Fernanda Venturini. Tem três filhos (Bruno, Júlia e Vitória)

Equipe
Rexona-Sesc (Rio de Janeiro)

Conquistas
Dois ouros (2004 e 2016), três pratas (1984 [jogador], 2008 e 2012) e dois bronzes (1996 e 2000) em Jogos Olímpicos; três ouros (2002, 2006 e 2010) em Mundiais


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