Folha de S. Paulo


Dupla de refugiados troca guerra civil na Síria pelo futebol na Europa

Michael Dalder/Reuters
O sírio Hamdi Al-Kadri apita partida da nona divisão da Alemanha
O sírio Hamdi Al-Kadri apita partida da nona divisão da Alemanha

Hamdi Al-Kadri e Mohammed Jaddou saem de casa sem medo da morte na próxima esquina. Isso é muito mais do que tinham quando viviam na Síria, país da Ásia Ocidental devastado pela guerra civil. O conflito já causou cerca de 400 mil mortes. São cinco milhões de refugiados. Um milhão deles conseguiram chegar à Alemanha. É onde a dupla tenta reconstruir a vida no futebol em caminhos opostos.

"Se você vem da Síria, com certeza conhece alguém que morreu na guerra ou tentando fugir dela", disse Jaddou à Folha, por e-mail.

Aos 19 anos, ele é a maior revelação do futebol sírio. Em 2014, foi um dos principais responsáveis por classificar a seleção para a Copa do Mundo sub-17, disputada no Uruguai em 2015. Quando o torneio chegou, o meia já havia desafiado a travessia do Mar Mediterrâneo para deixar a terra natal.

"O futebol não parou na Síria com a guerra, mas a não ser que você more em Damasco, é arriscado demais. E o esporte passou a ser a última das minhas preocupações", afirma Al-Kadri, por meio de sua filha Leen. Ele não fala inglês.

Al-Kadri, 51, era o principal árbitro do futebol local. Esteve na Copa da Alemanha, em 2006. Foi um dos assistentes deixados pela Fifa na reserva, à espera de alguma lesão dos titulares, o que não aconteceu. Ele decidiu se refugiar na Europa bem antes de Jaddou, em 2012.

"Não havia mais condições de continuar", afirma.

Al-Kadri havia desistido da arbitragem. Em outubro do ano passado, foi convidado a apitar partidas da Postbauer-Heng, a nona divisão do futebol alemão. Não recebe nada por isso, mas se diz grato porque o trabalho o ajuda a se adaptar ao novo país. Quando entra em campo, é aplaudido.

"Antes de chegarmos à Europa, moramos na Jordânia. O objetivo sempre foi ir para a Alemanha. Quando estive aqui na Copa do Mundo, vi o quanto é um lugar especial. Tudo funciona. Não se parecer com nada o que vivi antes", confessa.

A jornada para escapar da guerra também foi algo que Jaddou jamais havia visto. Não dormiu por três noites. Ele e os outros homens do barco superlotado se revezavam na missão de tirar a água que não parava de entrar. No segundo dia, o motor estourou. A embarcação ficou à deriva por mais de 24 horas, até ser vista por um navio cargueiro, que alertou a guarda costeira italiana.

Reprodução
O jogador sírio Mohammed Jaddou
O jogador sírio Mohammed Jaddou

Meia que era considerado o futuro do futebol sírio, Jaddou hoje está nas categorias de base do Arminia Bielefeld, da segunda divisão alemã.

"Tudo o que eu sempre quis fazer foi jogar bola. Fosse no meu país ou em qualquer lugar. Isso estava se tornando impossível. O governo nos obrigava a passar por um período de treinos em Damasco. Quem não fosse, seria punido. No caminho, o ônibus passava por tiroteios. Se as forças rebeldes nos encontrassem, estaríamos mortos. Aquilo não era vida", relata.

Para fugir, a família vendeu a casa em Latakia, cidade do litoral. O governo italiano o deixou na Sicília. Ele e o tio Zakaria rumaram para o norte. Um voluntário lhe deu uma bola de presente. Era com ela que treinava todos os dias.

"Dormimos na estação central de Milão algumas noites. Pagamos tudo o que restava do nosso dinheiro para um intermediário nos levar para a Alemanha", diz.

Jaddou se considera estabelecido na nova casa. Enquanto não tinha os papéis para ser regularizado, viu interesse de clubes de primeira divisão, como Borussia Dortmund e Bayer Leverkusen, desaparecer.

"Ele é um diamante bruto. Tem visão de jogo e talento", afirma o técnico Carsten Rump, do time sub-19 do Arminia Bielefeld.

A Síria ainda tem chance de disputar a Copa do Mundo na Rússia, em 2018. Em março, faz partida decisiva contra Uzbequistão. Jaddou nem sonha em voltar a vestir a camisa da seleção. Sabe que, para o regime que comanda o pais, se tornou um nome maldito. Ainda tem pesadelos com a morte do seu melhor amigo e colega de quarto na seleção. Tarik Gharir foi atingido pela explosão de uma bomba.

"Quando ele morreu, perdi meu irmão mais velho", afirma.

O meia que se espelha em Cristiano Ronaldo tem uma preocupação maior. Em fevereiro, devem chegar à Alemanha os membros de sua família que ainda estavam na Síria: a mãe Latifa e os irmãos Abdullah e Omar.

"Conseguir se manter no futebol na Alemanha, depois de tudo que passamos, é uma redenção. Faz com que a gente se sinta útil, importante", completa o árbitro Hamdi Al-Kadri.


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