Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Autobiografia de Johan Cruyff é uma oportunidade perdida

Johan Cruyff tanto um jogador genial quanto grande pensador sobre o futebol. Como escreveu seu biógrafo holandês Nico Scheepmaker, "mesmo quando ele dizia bobagens, eram sempre bobagens interessantes".

O jogo de passes rápidos que times como o Barcelona e a seleção alemã praticam hoje teria sido inventado por Johan Cruyff e o treinador Rinus Michels no final dos anos 60, no Ajax de Amsterdã.

Infelizmente, a autobiografia póstuma do jogador não contém qualquer das virtudes de Johan Cruyff, mas expõe todos os seus defeitos. Nesse sentido, ao menos, se trata de um documento autenticamente "cruyffiano".

Johan Cruyff

Há alguns trechos interessantes. Cruyff conta que jogar como apanhador no time infantil de beisebol do Ajax o ajudou a entender o futebol. "Era preciso saber para onde você lançaria a bola antes de recebê-la, o que significava que você precisava ter uma ideia de todo o espaço em torno de você e do posicionamento de cada jogador, antes de lançar a bola... Você está sempre ocupado, decidindo entre espaço e risco em frações de segundo". Mais tarde ele capturaria essa necessidade de antecipação em uma de suas famosas frases: "Antes de cometer um erro, eu não cometo aquele erro".

Cruyff recorda que quando a seleção holandesa chegou à Copa do Mundo de 1974, ficou surpresa ao descobrir como era boa. Eles não esperavam superar equipes como a do Uruguai e a do Brasil. "Nossos oponentes não pareciam fazer nem ideia do que estava acontecendo. Eles faziam em campo coisas que nós tínhamos deixado para trás cinco ou seis anos antes".

Ele explica que decidiu não jogar a Copa do Mundo seguinte, em 1978, porque não queria deixar a mulher e os filhos sozinhos apenas alguns meses depois que um sequestrador armado invadiu a casa deles em Barcelona.

Mais ou menos na mesma época, ele perdeu sua fortuna ao investir em um empreendimento de criação de porcos, uma insensatez que o futebolista descreve com franqueza: "Você precisa admitir honestamente os seus erros, quando eles acontecem. A começar pelo fato de que porcos realmente não me interessam".

Em outro raro vislumbre de autoconhecimento, ele parece compreender o motivo para que Marco van Basten, um jogador que ele dirigiu, tenha optado por se manter distante dele: quando treinava o Ajax, Cruyff certa vez convenceu Van Basten a jogar uma partida sem importância "em um momento no qual o tornozelo dele não estava em boa condição". Durante o jogo, a lesão do jogador "se agravou a tal ponto" que Van Basten terminou por abandonar o futebol aos 28 anos.

Mas a maior parte de "My Turn: The Autobiography" consiste de bobagens desinteressantes. Cruyff não tem talento natural para contar sua história. "O passado é algo sobre o que eu penso demais", ele admite na primeira frase do livro. Ele era um pensador conceitual sem talento narrativo, humor ou percepção sobre o que as demais pessoas sentem. Cruyff também deixou de pensar aplicadamente sobre o futebol depois que o último time que dirigiu, o Barcelona, o demitiu em 1996.

Consequentemente, o livro está repleto de autojustificativas tediosas para os desentendimentos de Cruyff com todo mundo.

O ponto mais baixo surge quando Cruyff anuncia que "a fé cristã tem 10 mandamentos a respeitar; eu mesmo tenho 14 regras que classificaria como sabedoria fundamental". A regra número um que ele revela é "Jogue pelo time -para realizar alguma coisa, você precisa fazê-lo com os companheiros". A regra parece notavelmente parecida com o mandamento número 13: "Joguem juntos
-isso é parte essencial de qualquer esporte".

O livro não resolve a questão de se Cruyff sabia que estava morrendo ao escrevê-lo. O prefácio deixado pelo jogador é de março de 2016, o mês em que ele morreu de câncer no pulmão, mas existem indicações de que tentou negar sua situação até perto do fim.

O livro representa uma oportunidade perdida de deixar um monumento escrito. Cruyff merecia muito mais.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

LIVRO "My Turn: The Autobiography"
AUTOR Johan Cruyff
PÁGINAS 320
QUANTO US$15,54 (R$ 49, na Amazon.com. Sem previsão de publicação no Brasil)


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