Folha de S. Paulo


Raonic e prodígios desafiam velha elite e formam nova ordem no tênis

A caminho da final de Wimbledon, algumas semanas atrás, Milos Raonic fez um curso relâmpago sobre a psicologia de atitude no tênis masculino de ponta. O currículo oferecia uma aplicação muito direta do pensamento positivo, disse seu treinador, ou instrutor, Carlos Moyá.

"Tentei convencer Milos de que a coisa dos quatro grandes acabou", disse Moyá.

Conclusão justificada ou apenas a expressão de um desejo? A caminho do Aberto dos Estados Unidos, o último torneio de Grand Slam deste ano, a resposta -a depender do critério aplicado- talvez seja sim.

Rafael Nadal, cronicamente lesionado, nem chegou a Londres, depois de abandonar o seu amado Aberto da França na terceira rodada, com problemas em um dos pulsos. Novak Djokovic, que conquistou os títulos dos quatro torneios de Grand Slam anteriores a Wimbledon, terminou derrotado de surpresa, lá, pelo norte-americano Sam Querrey. Isso abriu a porta para que Raonic, um tenista canadense de 1,96 m de altura conhecido pela força do saque, virasse o jogo contra Roger Federer, lesionado e envelhecido, nas semifinais, depois de começar perdendo por dois sets a um.

No caminho de Raonic para um grande título, e talvez para uma nova ordem no tênis masculino, restava Andy Murray. O último dos integrantes da velha elite do tênis defendeu a fortaleza e ficou com a coroa em três competitivos sets, a 42 ª vitória dos quatro grandes nos últimos 46 torneios de Grand Slam (outro conjunto de quatro grandes).

Mesmo sem que Raonic ou outros prodígios esperados da nova geração ascendam à primeira linha, o tênis masculino -que por boa parte dos últimos 10 anos vinha sendo carregado por uma narrativa bastante popular e apreciada- está sentindo o começo de um abalo, se bem que ainda não sísmico.

De acordo com Moyá, a agulha se moveu o suficiente para argumentar que os quatro grandes acabaram.

"Mesmo sabendo que Stan Wawrinka derrotou Djokovic no Aberto da França do ano passado, a sensação continuava a ser a de que esses quatro caras controlavam o esporte", declarou, em uma entrevista durante a Copa Rogers, este mês em Toronto. "Agora as coisas mudaram, para mim".

Nadal, 30, voltou a competir recentemente, mas Federer, 35, se afastou depois de Wimbledon, pelo restante do ano, para dar um repouso ao seu joelho cirurgicamente reconstruído. Djokovic viu sua aura de invencibilidade perfurada por Querrey e por Juan Martín del Potro, que voltou à boa forma, em uma surpreendente e chorosa derrota na primeira rodada do torneio olímpico de tênis.

Murray continua firme como segundo melhor jogador do tênis mundial e conquistou resultados brilhantes nos últimos meses, mas será que ele conseguirá manter essa excelência por tempo suficiente para conquistar o posto mais alto do ranking?

"A diferença para esses dois jogadores [Djokovic e Murray] continua muito grande", disse Moyá. "Mas o que importa é estar lá, manter a regularidade. E acreditar que o jogo deles vai cair, que agora eles podem ser derrotados, e que você será o jogador capaz de fazê-lo".

Moyá não quis exagerar, e se limitou a mencionar a possibilidade de vitória em um grande torneio qualquer, e não a de atingir o topo do ranking.

Querrey, um norte-americano de 1,99 m de altura cujo posto mais alto no ranking era um 17º lugar em 2011, foi o improvável vitorioso que pôs fim à série de quatro títulos consecutivos de Grand Slam de Djokovic. Uma vitória marcante em sua carreira que o fez sentir, temporariamente, como "se fosse o segundo melhor do mundo", conforme ele mesmo disse.

Em Wimbledon, ele foi congratulado ruidosamente nos vestiários e recebeu mensagens de texto de muita gente o elogiando pelo feito. Em sua cidade, Los Angeles, ele foi convidado para fazer o arremesso inicial em um jogo de beisebol do Dodgers. Nos torneios de Washington e Toronto, ele tirou fotos com torcedores que usualmente teriam reconhecido que ele é jogador, mas sem saber exatamente o seu nome.

"É divertido, de certa forma, caminhar pelas quadras e receber cumprimentos de todos por derrotar Djokovic", disse Querrey. "Não é como se me dissessem: 'bom trabalho: você venceu'. E sim: 'bom trabalho, ele perdeu'".

O paradoxo da ascensão de Djokovic foi tamanho que, nos dois últimos anos, ele obscureceu a era dos quatro grandes, ainda que Federer venha desafiando as normas cronológicas e tenha acompanhado Djokovic a semifinais e finais, apenas para sair derrotado, desapontando as massas, que desejavam vê-lo vencer mais um torneio de Grand Slam para estender o seu recorde de 17 títulos.

Uma década atrás, quando Federer atingiu um patamar único no tênis, o esporte e sua base mundial de torcedores celebravam seu talento, sua supremacia, sua estatura mundial como o embaixador do tênis.

Djokovic, um sérvio ponderado, divertido e determinado, enfrentou as ondas de sentimento positivo com relação a Federer, ainda o preferido popular na maioria dos lugares, e ao escocês Murray, em Wimbledon.

Mas ao fechar seu Grande Slam pessoal em junho, em Paris, Djokovic foi, por fim, recompensado por uma chuva de afeto da parte dos torcedores de Roland Garros porque ele desejava intensamente vencer o seu primeiro Aberto da França.

Em Toronto, onde ele se recuperou da derrota em Wimbledon ao bater Kei Nishikori com facilidade e garantir o título, Djokovic definiu aquele clímax em Paris como "momento inesquecível, notável, uma sensação que é divino experimentar, sinceramente. É um daqueles sentimentos que você guardará para sempre".

Para seus concorrentes, o reino de Djokovic, Federer, Nadal e Murray pode parecer ter começado há muito tempo, ainda que Toni Nadal, tio e técnico de Rafa, tenha declarado a era dos quatro grandes extraoficialmente encerrada já em 2014. Naquele ano, Wawrinka derrotou Djokovic e Nadal para vencer seu primeiro título de Grand Slam, na Austrália, enquanto Marin Cilic esmagou Federer nas semifinais do Aberto dos Estados Unidos, que ele veio a vencer.

"É uma coisa normal. O domínio de Federer, Nadal e Djokovic se reduziu", disse Toni Nadal, explicando que as demandas físicas cada vez mais intensas de um esporte que a tecnologia conduziu a grandes avanços estavam exercendo seu efeito inevitável, especialmente sobre o seu sobrinho, um jogador muito físico.

Naquele momento, ele previa que Raonic, Nishikori e Grigor Dimitrov invadiriam a festa dos quatro grandes e disse que, em breve, contariam com a companhia de um tenista que, no futuro, viria a superá-los, o alemão Alexander Zverev, 19, que muita gente vê como futuro vencedor de múltiplos títulos de Grand Slam.

Há outros tenistas que podem entrar na lista: o austríaco Dominic Thiem, 22; o talentoso mas turbulento australiano Nick Kyrgios, 21; Borna Coric, 19, da Croácia; e o norte-americano Taylor Fritz, 18.

"Há muitos talentos jovens, mas classifico Sascha Zverev como alguém que realizará coisas incríveis nesse esporte", disse o veterano norte-americano John Isner. "Treino com ele um pouco na Flórida e, para um garoto grandalhão que ainda não acostumou ao seu físico, ele revela imenso talento".

Esses e outros possíveis herdeiros são parte do motivo para que -mesmo que desconsideremos a avaliação de Moyá- a maior parte das discussões sobre o fim dos quatro grandes venha acompanhada por um ponto de interrogação e não de exclamação.

Com todos os problemas físicos que sofreram este ano, Federer e Nadal continuavam entre os quatro primeiros do ranking, atrás de Djokovic e Murray, na classificação pós-Wimbledon. Em agosto, Wawrinka superou Nadal e conquistou o quarto lugar, e Federer em breve perderá posições por conta de sua ausência.

Além de se manter saudável, Nadal precisa provar que é capaz de reconquistar a forma que tinha no momento mais alto de sua carreira. Ele chegou às semifinais de simples no torneio olímpico de tênis no Rio de Janeiro, e conquistou o ouro nas duplas masculinas.

Mas como definir suas derrotas por dois sets a zero diante de Nishikori, na disputa do bronze olímpico, e de Coric, no Masters 1.000 de Cincinnati da semana passada –sinais de que ele está enferrujado nas competições ou de que sua carreira já entrou em decadência?

A questão que continua em aberto é quem, excetuado Raonic, poderá em breve ocupar os postos vagos entre os quatro grandes.

Paul Annacone, antigo tenista profissional e treinador de Federer e Pete Sampras, disse que as carreiras dos tenistas atuais foram estendidas em um esporte que se tornou mais adulto devido a avanços tecnológicos e ao melhor condicionamento dos atletas. Isso tornou difícil determinar quando exatamente um jogador chegará à sua plena maturidade nas quadras.

Moyá disse ter lembrado a Raonic, 25, de que Wawrinka tinha 28 anos ao vencer o Aberto da Austrália. Murray perdeu suas quatro primeiras finais de torneios de Grand Slam antes de enfim derrotar Djokovic no Aberto dos Estados Unidos em 2012, e parece atingir seu pico aos 29 anos.

"Quando eu jogava, se você não conquistasse um título de Grand Slam aos 21 ou 22 anos e não chegasse naquela idade aos 10 mais do ranking, melhor esquecer", disse Moyá. "Por isso, sinto que o equivalente a ter 20 anos então é ter 25 ou 26 anos hoje. Posso dizer a Milos com tranquilidade que os melhores dias dele ainda estão por vir".

A grandeza no tênis foi sempre mais fácil de projetar do que de atingir porque ninguém pode prever como um jogador responderá às pressões e às expectativas de um esporte itinerante.

Ao chegar à semifinal em Wimbledon em 2014, que perdeu em uma partida aguerrida contra Djokovic, Dimitrov, 25, parecia pronto a reforçar sua reputação como "Federer Júnior", mas terminou por despencar nos rankings e mencionar a semelhança com Federer como "um peso, de alguma forma", e dizer que "isso não ajudou".

Uma lição dura foi aprendida do outro lado daquela rodada de semifinais, e naquele momento Raonic estava preparado para aproveitar sua oportunidade quanto Federer cometeu duas duplas faltas e desperdiçou uma vantagem de 40 a 0, quando estava perdendo por quatro a games a cinco no quarto set.

Para Querrey, a noção de mostrar mais resistência em quadra do que Djokovic, o tenista que ostenta a melhor forma física entre os quatro grandes, envolve menos preparação psicológica e mais se convencer em quadra do que ele é capaz.

"Eles se destacaram tanto que, quando você entra em quadra, já sente que está em dificuldade, porque esses jogadores foram praticamente os únicos tenistas a vencer torneios de Grand Slam nos últimos oito anos", ele disse. "E assim, só quando estou em quadra para jogar contra eles consigo pensar que, opa, estou indo bem, ou, ei, estou sendo surrado".

Desconsideradas as motivações táticas de Moyá, pouca gente se dispõe nem que seja a especular que Federer e Nadal talvez estejam velhos ou lesionados demais para manter suas posições dentro dos quatro grandes. Mas a última grande vitória de Nadal foi o Aberto da França de 2014, enquanto Federer, apesar de ter chegado perto de um grande título por diversas vezes, já está há quatro anos sem grandes vitórias, depois de derrotar Murray em Wimbledon para seu 17º título de Grand Slam, em 2012.

Murray seguiu seu segundo título consecutivo em Wimbledon com o segundo ouro olímpico também consecutivo. Mas, com apenas três títulos de Grand Slam em sua carreira, ele é o membro com credenciais mais fracas nos quatro grandes. Seria possível argumentar que Wawrinka, que no ano passado impediu Djokovic de ganhar os quatro títulos de Grand Slam no mesmo ano e atingiu o terceiro posto do ranking, sua colocação mais alta, em 2014 -está merecendo vaga nos quatro grandes já há três anos.

"O que os destaca é a regularidade deles, que é inacreditável", disse Wawrinka em Toronto.

É por isso que os súbitos e surpreendentes tropeços de Djokovic nos últimos meses despertaram esperanças de que em Nova York talvez tudo seja possível. "Não vou dizer que a porta está escancarada, mas há uma brecha", afirmou Isner. "O pessoal começa a se aproximar deles".

Djokovic concordou, sem admitir que o grande momento de qualquer jogador -incluindo o seu- estivesse encerrado ou a caminho disso. Até que um ou mais dos jogadores mais jovens se torne um vitorioso frequente, disse ele, a morte dos quatro grandes não passa de profecia.

"Estamos todos cientes de que isso não vai durar para sempre, você sabe", disse o sérvio. "Alguém vai entrar na parada. Determinar se isso vai acontecer ainda este ano, no ano que vem, ou dentro de alguns anos, é algo que não sabemos. Mas, como você sabe, nós quatro tivemos a sorte de dominar um esporte pelos últimos 10 anos e nos mantivemos regularmente nessas posições".

Annacone treinava Sampras quando ele era considerado velho demais para os grandes títulos, tendo passado dos 30 anos, e disse que a carreira de seu comandado é um exemplo cautelar para quem descarta Federer e Nadal.

"Eu vivi essa situação com Sampras. As pessoas diziam que ele nunca mais venceria", disse Annacone, em referência à partida final da carreira do norte-americano, uma vitória sólida sobre Andre Agassi por três sets a um na final do Aberto dos Estados Unidos de 2002, que valeu a Sampras seu 14º título de Grand Slam, então um recorde.

"Esses caras estão entre os grandes da história do tênis, e viemos a esperar tanto deles que as avaliações terminam um pouco distorcidas".

Os resultados importam, porém, os anos passam, e parece que os quatro grandes, como conceito separado do destino individual dos integrantes do grupo, estão a caminho de desaparecer.

"A sombra que eles lançavam era imensa", disse Isner. "Não acredito que jamais voltemos a ver algo parecido".

Tradução de PAULO MIGLIACCI

Que esporte é esse? - Olimpíada - Folha de S.Paulo


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