Folha de S. Paulo


Análise

Muhammad Ali, o rei que conseguia andar com os súditos

Não perca tempo, assista a "Quando Éramos Reis", documentário vencedor do Oscar, finalizado mais de duas décadas após o episódio que relata, um dos maiores da história do esporte.

Em 1974, numa série de eventos absurda, a então bolsa mais cara da história do boxe (US$ 5 milhões) seria paga por um desafio no então Zaire, em meio a um festival de cultura negra que reunia estrelas como BB King e James Brown. Muhammad Ali, o azarão, enfrentaria George Foreman, o campeão invicto e dez anos mais novo, no ponto alto da festa.

O filme é sensacional e conta uma história que beira o inverossímil. Depoimentos do escritor Norman Mailer, que cobriu a luta como jornalista, Spike Lee e outros comprovam que aquilo tudo não só aconteceu, como nada parecido, jamais, em lugar algum, vai acontecer novamente.

Ali sabia que era mais fraco e construiu com antecedência, dia após dia, palavra a palavra, suas chances no combate, que, se perdido, certamente findaria sua carreira. E essa preparação levou semanas, meses, em um cenário esdrúxulo para os padrões do esporte atual, Kinshasa, a capital de um país africano pobre, comandado por um ditador, no melhor estilo anos 1970.

Rapidamente percebeu que precisava arregimentar o público local. Abriu os treinos, acenou pelas ruas e aprendeu a frase que repetia como mantra, fazendo todos a seu redor gritarem a seu comando: "Ali Bomaye!", nada mais que "Ali, mate-o".

Veja o vídeo

Em uma das cenas mais poéticas, ele corre por uma estrada, conversa com as pessoas no caminho, mexe com as crianças. O boxeador profissional se transforma aos poucos em uma pessoa comum, mais um que simplesmente está no caminho. Dá socos no ar, pôr do sol atrás, sorri para a câmara.

Parte dessa cena foi usada anos mais tarde em um comercial da Adidas. A marca alemã manipulou engenhosamente a imagem para colocar outros esportistas, patrocinados seus, claro, correndo ao lado do pugilista na estrada. Beckham, Zidane, Ian Thorpe, Maurice Greene e até sua filha Laila participam do treino atemporal. O filme resulta muito bonito também, mas impreciso. 

Na cena original, Ali, o maior lutador de todos os tempos, era o rei capaz de andar junto com seus súditos. Não como rei, mas como um deles, como mais um.

Em entrevista a David Remnick, Muhammad Ali afirmou que "precisava provar que podia haver um novo tipo de negro", que "tinha que provar isso ao mundo". Sua luta era essa. O esporte, o boxe, foi apenas o meio.


Endereço da página:

Links no texto: