Folha de S. Paulo


O bromance entre Ernest Hemingway e um boxeador neozelandês

Foi numa praia em frente ao hotel Compleat Angler, na ilha de Bimini, nas Bahamas, que dois velhos amigos tiraram suas camisas, cerraram os punhos e mandaram ver.

Era o verão de 1935, e um duelo entre pesos-pesados sem precedentes estava prestes a rolar. Um dos combatentes era Tom Heeney, boxeador neo-zelandês conhecido como "the Hard Rock from Down Under" [A Rocha das Terras Oceânicas] que, sete anos antes, lutara contra Gene Tunney pelo título mundial de pesos-pesados em frente a 46 mil pessoas, no Yankee Stadium, nos Estados Unidos.

O outro era ninguém menos que Ernest Hemingway, escritor americano rumo a se tornar um dos maiores autores do século 20. Ele acreditava ser um bom boxeador e vivia de peito estufado –uma vez, dizem, desafiou até Gene Tunney para uma luta–, mas não passava de um amador.

Eles trocaram pancadas por uns instantes e atraíram curiosos até que, para contar vantagem, Hemingway disse: "Melhor pararmos agora, Tommy; qualquer instituição de caridade daria tudo para passar o chapéu aqui".

O escritor não se cansava de contar essa história –ele ficava mais hiperbólico a cada narrativa, segundo os ouvintes–, e a autora neozelandesa Lydia Monin resolveu recontá-la mais uma vez na biografia que escreveu em 2008 sobre Heeney, o único nativo do país que lutou pelo título de pesos-pesados.

Hemingway alegava ter dado conta do recado, mas no livro From Poverty Bay to Broadway, Monin conta que George Brown, dono de uma academia de Nova York, conhecido de "Papa" [apelido de Hemingway, criado pelo próprio], comentou que o único jeito de o escritor conseguir dar um soco em Heeney seria se o pugilista estivesse atolado na areia.

Figuras literárias são atraídas pelo pugilismo desde que o esporte nasceu. Charles Dickens foi um dos espectadores da primeira luta por um título mundial da história, na Inglaterra, em 1860, ao passo que autores como Jack London, Arthur Conan Doyle, Joyce Carol Oates e Norman Mailer (com o famoso romance The Fight) costumavam escrever sobre o lirismo brutal do esporte.

Por que tamanho fascínio? Quando o gongo ressoa no boxe, o lutador enfrenta um oponente por conta e risco. É um lugar empolgante, mas solitário. Somente a combinação perfeita de trabalho duro, dedicação e mera sorte abre caminho para o sucesso. Talvez o mesmo se aplique à boa literatura.

"O pugilismo estava passando por um período de ouro, e as pessoas queriam ler sobre isso, então atraiu os grandes escritores", contou à VICE Sports Ron Palenski, renomado colunista de esportes neozelandês, em referência ao amigo famoso de Heeney.

"Mas acho que o drama humano do boxe profissional é que atraiu mesmo esses caras. Eles gostavam de observar a vida e escrever sobre a vida."

Hemingway ouviu falar de Heeney pela primeira vez quando ligou o rádio para escutar a luta pelo título em 28 de julho de 1928. Se ele já soubesse da história do neozelandês naquele momento, o escritor notoriamente machão estaria em chamas.

Foto via usuário do Flickr Archives New Zealand
O bromance entre Ernest Hemingway e um boxeador neozelandês

Nascido em 1898, Heeney aprendeu a lutar com o pai, o irlandês Hugh, em um estábulo de latão no quintal de casa, de acordo com Monin. Encanador e ex-soldado, ganhou uma medalha de honra por resgatar duas mulheres que surfavam na praia de Waikanae, em Gisborne, Nova Zelândia. Em 1921, ele representou sua província em rúgbi contra a seleção nacional da África do Sul, que estava por ali em turnê.

Seu dom de boxeador reluziu cedo, e ele subiu no ranking neozelandês rapidinho ao vencer o título de pesos-pesados da Associação de Boxe da Nova Zelândia em 1920, logo em sua terceira luta profissional. Ele lutou e perdeu as disputas pelos cinturões da Austrália e do Império Britânico antes de rumar aos Estados Unidos.

Nos EUA, ele conquistou um empate respeitável contra o desafiante Jack Sharkey, futuro peso-pesado, e depois venceu o desafiante canadense Jack Delany no Madison Square Garden, em março de 1928. Isso garantiu ao neozelandês um lugar no ranking internacional dos cinco melhores boxeadores e o colocou na roda de candidatos a campeão.

O detentor do título da época, Gene Tunney, havia derrotado dois anos antes o antigo campeão, Jack Dempsey, em uma das duas lutas mais famosas da década. Todavia, conforme Monin observou, Tunney prometera à nova esposa, a socialite nova-iorquina Polly Lauder, que deixaria o boxe assim que se casassem, em outubro de 1928.

Tunney estava atrás de uma luta fácil, então optou por Heeney.

Pela primeira vez desde Bob Fitzsimmons –campeão dos anos 1890, nascido na Irlanda, criado na Nova Zelândia–, a decisão de Tunney colocou um neozelandês sob os holofotes da mídia americana, chamando atenção para o outro extremo do mundo, uma raridade.

Heeney se preparou para a luta combatendo o futuro campeão peso-pesado James J. Braddock. Dempsey, então treinador de Heeney, disse aos jornalistas (segundo a biografia de Braddock, Cinderella Man, escrita por Jeremy Schaap) que "apenas um super-homem poderia derrotá-lo".

Já o autor Paul Gallico, famoso por escrever sobre boxe, descreveu o estilo de Heeney de outra forma no jornal The Daily News: "um triunfo em mediocridade, engatado em seriedade, de rara coragem e uma durabilidade revestida de ferro".

Enquanto isso, na Nova Zelândia, aparelhos de rádio ao redor de todo o país estavam sintonizados nos comentários atrasados e crepitados acerca da luta. O governo entrou em suspensão para que os membros do parlamento pudessem escutar. "Ele foi a primeira estrela esportiva do rádio na Nova Zelândia", disse Palenski.

Embora Heeney tenha aguentado onze assaltos no Yankee Stadium, seu único momento de brilho ocorreu no segundo assalto, quando ele mandou um gancho de esquerda impressionante para cima de Tunney, que por fim venceu por nocaute técnico.

Junto com Fitzsimmons e David Tua, nascido em Samoa, Heeney é um dos únicos três pugilistas ligados à Nova Zelândia que lutaram pela coroa de pesos-pesados. O sentimentalismo por causa desse fato, intensificado pelo tempo, gerou a lenda de que ele esteve a apenas um soco do título.

Contudo, Sir Bob Jones, magnata do setor imobiliário, que por acaso também é um dos principais historiadores de boxe na Nova Zelândia, diz que o pugilista "não passava de um cara bem esforçado".

"O lugar de Heeney na história do boxe, em termos gerais, é absolutamente insignificante", disse Sir Bob. "Ele não entraria para a lista dos top mil lutadores entre as dezenas de milhares que lutaram pelo título de pesos-pesados."

"Ele foi feito sob medida para levar uma surra besta do Tunney –a luta estava fora da alçada dele", acrescentou.

Hemingway ficou impressionado, no entanto. Os dois se encontraram em Nova York no início dos anos 30, e uma amizade profunda floresceu com Heeney, que deixou o esporte em 1933.

O escritor tornou-se um visitante regular do bar que Heeney abriu em Miami Beach em 1937. O duo volta e meia pescava junto em Florida Keys, e fazia viagens secretas a Cuba para beber, segundo Monin.

Hemingway também gostava de impressionar mulheres levando-as para conhecer o ex-pugilista. Martha Gellhorn, a famosa jornalista de guerra, e terceira esposa de "Papa", figura entre as visitantes.

"Esse cara é que é homem de verdade, e além de tudo, é escritor", Heeney disse sobre o amigo uma vez, de acordo com Monin. "Ele sempre admite que esteve em Cuba quando retorna, sem pestanejar."

Sir Bob vê a amizade de Hemingway com Heeney como uma tentativa fátua de parecer machão. "Hemingway se gabava muito", disse Sir Bob. "Ele gostava de se mostrar como um cara do boxe, embora fizesse papel de bobo."

"Toda essa história de hombridade que Hemingway abraçou nos últimos anos de vida –para mim, ele fez papel de bobo. Eu entendo por que ele andava com o Heeney, faz todo o sentido."

Embora Hemingway falasse de Heeney em suas cartas para os amigos, os dois passaram a se ver menos nos anos 50.

"O mundo quebra a todos, e alguns ficam mais fortes nos lugares quebrados", Hemingway escreveu uma vez, em O Sol Também Se Levanta. "Mas aos que não se deixam quebrar, o mundo os mata."

Hemingway nunca ficou forte o bastante nos lugares que precisava. O escritor tirou a própria vida em 1961.

Heeney viveu até 1984, na Flórida, e tudo indica que foi um homem contente. Ele entrou para o Hall da Fama da Nova Zelândia em 1996.

Cartazes de lutadores campeões passados estamparam as paredes do bar de Heeney, em Miami Beach, durante décadas a fio, inclusive um pôster enorme do próprio enquanto jovem, sem camisa, de punhos em riste.

Havia dois pequenos retratos ao lado do grande pôster, um de cada lado, fotografias assinadas de Hemingway, ostentando varas de pescar e um punhado de atuns.

Vai saber onde foram parar essas fotos; o antigo bar hoje é um boteco que serve buffalo wings de madrugada e costuma receber resenhas pouco positivas.

Contudo, segundo Monin, quando Heeney ainda era vivo, as fotos de "Papa" estavam entre os pertences mais estimados do boxeador.

WikiCommons
Papa em seu querido barco de pesca, o
Papa em seu querido barco de pesca, o "Pilar", em 1935

Tradução: Stephanie Fernandes

Leia no site da Vice: O bromance entre Ernest Hemingway e um boxeador neozelandês


Endereço da página: