Folha de S. Paulo


Acompanhamos um GP de carrinho de rolimã em São Bento do Sapucaí

Era meia-noite e meia de sexta quando chegamos ao sítio Refúgio Bivaque, em São Bento do Sapucaí, no interior de São Paulo, e vimos, entre muitas peças e ferramentas, uma garagem de carrinhos de rolimã. Enfileirados, alguns deles incompletos, os carros repousavam na grama em meio a um silêncio total. O cenário era de pit stop adormecido.

Perto dali, os pilotos já estavam dormindo. Precisavam de descanso para a volta de reconhecimento no sábado, 16 de abril, que rolaria na famosa Pedra do Baú, um conjunto de rochas gnáissicas e ponto turístico local. Armamos nossas barracas e também tiramos aquele cochilo. Acordamos bem cedo, com barulhos de martelos e serras, e vimos que os ajustes finais estavam a todo vapor. Faltavam menos de três horas para a primeira descida.

Antes do reconhecimento, houve uma reunião geral. Os competidores, em sua maioria tiozinhos, passavam as orientações e regras da prova. Embora possa não parecer de cara, o "2º GP Chico Bento de Carrinho de Rolimã" é uma competição séria. Não tem nada de bagunça. Os pilotos, vindos de Vitória (ES), Poços de Caldas (MG) e São Paulo (capital) estavam ali para competir e ganhar.

A atração eram os carrinhos, verdadeiras engenhocas. Tinha dos tradicionais, com apenas a madeira, o assento e as rolimãs, até carros com aerofólio e carenagens. Um dos mais criativos era a réplica da McLaren do Ayrton Senna. Todos respeitavam as normas: não podiam ultrapassar 1,80 metro de comprimento, 1 metro de largura e 40 quilos.

Com os carrinhos em cima do caminhão, todos partimos rumo à descida de reconhecimento na serra. Ali fomos surpreendidos. A largada parte do alto da montanha. É uma descida de 7 km, onde alguns pilotos atingiam cerca 60 km/h, brincando. Era carrinho rodando, ultrapassagem, tombos. Se essa era a volta de reconhecimento, imaginamos que o pior estava por vir.

A Pedra do Baú, vale dizer, é bem amigável ao esporte radical. Os amantes da escalada em rocha que o digam. Foi por causa deles, aliás, que o GP recebeu o nome de Chico Bento. É que, anos atrás, os escaladores tinham alguns pontos estratégicos para chegar à pedra, e um deles era acessado por meio da propriedade do senhor Chico Bento, um homem muito bacana que, sem ganância nenhuma, acolhia os atletas e nunca cobrou nada pelo acesso via sua propriedade. Às vezes Chico estava na trilha com água gelada e dava aos escaladores. "Só quem estava na pedra escalando o dia todo no sol sabe da diferença que fazia aquele ato", explicou Mika, organizador da corrida. "Fora o caldo de cana", gritou o diretor de prova, Zé, após o Mika explicar o motivo do nome da corrida. Os filhos de Chico Bento foram homenageados e foram os responsáveis pela abertura oficial da corrida.

Nas nossas andanças, conhecemos no GP o José Fabiano da Silva Teobaldo, o "Seo Teobaldo", um velhinho figuraça de 63 anos que, acreditem ou não, pegou dinheiro emprestado com a mãe para ir à Pedra do Baú. "Minha mãe me deu dinheiro pra vim, mas chorou. Me deu um 'capitalzinho'. Quando eu ia saindo, ela falou: 'cuidado hein. Você não podia desistir, não? É muito longe'. Eu disse: não mãe, vai dar tudo certo", contou. E foi. Viajou mais de 1.000 km do Espírito Santo até São Bento do Sapucaí para participar do GP.

Quando jovem, "Seo Teobaldo" já era apaixonado por rolimã. "Andei muito, antes mesmo de ser rolimã. Era bobina, umas madeiras que enrolava papel para embrulho", relembrou. O motivo que o despertou a voltar a andar foi o netinho. "Fui fazer um carrinho pra ele, para tirar dessa direção de computador, tablet e, na brincadeira, fui testar o dele, que é bem pequenininho. Ah, meu amigo, me empolguei e fiz um pra mim", disse, aos risos.

Na madrugada de sábado para domingo, rolaram mais duas corridas. Essas já valiam colocações para a prova dominical. Se achávamos que os tiozinhos eram loucos, tivemos certeza quando o racha foi disputado no breu. Eles usavam lanternas nos capacetes e nos carrinhos para iluminar a pista. Só que a adaptação não funcionou para todos. Alguns ficaram na mão com suas lanterninhas. A volta foi até as 2h.

O despertador do domingo não foi diferente do dia anterior: marretadas e furadeiras. E lá fomos nós. O problema de existir corridas antes da principal é que os carrinhos não aguentam. É solda que estoura, parafuso que quebra, prego que solta. Tinha gente que estava desmanchando dois carrinhos para fazer um. Alguns pegavam o carrinho do amigo desclassificado e iniciavam as trocas de peças. Era quase como uma cirurgia: implantava-se um eixo aqui, um parafuso ali e costurava tudo com o bom e velho arame.

Essas corridas de domingo eram eliminatórias. Desciam cerca de 30 corredores. Eles iam sendo desclassificados conforme ficavam para trás e, assim, não corriam na próxima volta. Sobraram quatro pilotos para a disputa dos três primeiros lugares. Dois corredores de Minas Gerais ficaram em primeiro e segundo, respectivamente, seguido de um paulista que ficou com a terceira colocação.

"Seo Teobaldo" ganhou prêmio também: o troféu "Tartaruga Touché", concedido ao piloto mais lento da competição. Mas, segundo nossa análise, ele não fez feio, não. É que sua estratégia era diferente, mais calma. Para vencer, os pilotos largavam o mais rápido possível e, na pressa, rodavam ou quebravam. "Seo" Teobaldo ia de boa, devagarzinho, ultrapassando esses apressadinhos, um por um. Isso fez lembrar os organizadores da fábula da "Lebre e da Tartaruga".

As fotos resumem o clima alto astral da competição que, esperamos, conquistará o país.

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