Folha de S. Paulo


Com bênção de Bolt, carioca Aldemir mira 100 m e 200 m na Olimpíada

O primo o apresentou aos seus super-heróis por meio de uma fita VHS. Foi como se aparecesse a vinheta na TV e o narrador dissesse: "Enquanto isso, na sala de Aldemir Gomes da Silva Jr...". E no lugar de Super-Homem, Batman, The Flash, Lanterna Verde e Aquaman, surgiam Michael Johnson, Donovan Bailey, Ato Boldon, Maurice Greene e Robson Caetano.

Aquele dia, quando tinha 8 anos, mudou o rumo da história do carioca que perdeu os pais, assassinados, aos 11, e se tornou um dos principais velocistas do Brasil.

"O atletismo salvou a minha vida", afirma Aldemir, 23, à Folha. "Quando comecei a ver aquele vídeo, o que aqueles atletas faziam, parecia que estava assistindo à Liga da Justiça. Fiquei vidrado, assisti várias vezes", conta. Então lá foi o menino correr na pista do Célio de Barros, ao lado do estádio do Maracanã. "Dei uma volta de 400 [metros], descalço. O treinador me olhou, pediu para eu medir meus batimentos cardíacos e dar mais um pique de 100. Não parei. Ele ficou espantado", recorda o especialista nos 100 m e 200 m.

Dez anos depois, Aldemir deixou a zona norte carioca para surpreender a zona leste de Londres. No Estádio Olímpico dos Jogos de 2012, logo na primeira eliminatória dos 200 m, lá estava ele. Quatro raias ao lado de alguém que, para a maioria dos humanos, é uma espécie de Super-Homem olímpico. E o brasileiro resolveu desafiar o tal Usain Bolt.

Por cerca de 100 m –e porque estava na raia mais externa da pista, largando à frente dos demais atletas– Aldemir esteve na liderança, com Bolt atrás. Na reta final, como esperado, o jamaicano disparou e terminou tranquilamente em primeiro.

O brasileiro fez muita força e conseguiu ficar na segunda colocação, classificando-se para as semifinais, com 20s53. Ali começava a relação entre os dois atletas.

"Não sei o que acontece, mas ele gosta de mim. Não falo muito inglês. Mas sinto que ele quer se aproximar", diz.

Nas semifinais de Londres, voltaram a correr lado a lado. Bolt venceu novamente, e Aldemir não chegou à final. Com o tempo obtido na eliminatória, poderia ter sido o sétimo naqueles Jogos.

O brasileiro evoluiu. Em 2014, fez duas vezes seu melhor tempo nos 200 m (20s32), o que o deixou com a 33ª marca do ano. Sofrendo com lesões, em 2015 não passou do 75º tempo do ano (20s44), mas foi o suficiente para alcançar o índice olímpico, o que dá a ele boas chances de estar na Rio-2016.

O ano ruim refletiu no Mundial de Pequim, em agosto. E novamente Bolt estava lá, conquistando o ouro e dando moral para Aldemir.

"No Mundial não passei das eliminatórias. Fui embora muito chateado para o hotel, o mesmo que Bolt estava. Eu estava jantando, de cabeça baixa. Ele me viu e disse: "O que foi?". Não respondi. Ele insistiu, e minha treinadora [Vânia Valentino] explicou que eu não tinha corrido bem", recorda Aldemir.

Foi quando Bolt disse o que para o brasileiro soa como uma profecia. "Escreve o que estou te dizendo: 'Você vai fazer muita história ainda, 2016 vai ser o nosso ano'", conta.

Naquele momento, Aldemir diz que estava "tão puto" que não deu atenção ao jamaicano. No outro dia, já fora do Mundial, foi treinar. Quando entrou no ônibus, quem estava lá? Bolt. Foi só então que o agradeceu, em inglês, com um "muito obrigado". E se cumprimentaram.

"Pensei: 'Por que foi tão maneiraço?'. Acho que é porque, na Olimpíada, não fiquei pagando pau pra esses caras. Vejo o Bolt como qualquer competidor, não lenda. Acho que, pela minha postura, ele me respeita como atleta."

À Folha, Ricky Simms, agente de Bolt, diz que o jamaicano conhece Aldemir, mas não acompanha os resultados atuais para comentar o possível desempenho no Rio.

Aldemir diz que Bolt não é sua grande referência. Quem ocupa esse espaço é sua treinadora. "A personalidade dela me impressiona", diz. "Aqueles atletas da fita, sim, eram meus heróis. Fizeram me apaixonar pelo atletismo", afirma Aldemir, que se define como dono de "uma história complicada".

Aos 11 anos, em menos de dois meses, perdeu o pai, assassinado após sair da prisão, e a mãe, morta pelo padrasto dele. Sua avó, que o criou, morreu quando ele tinha 17.

"O esporte me encaminhou. Comecei aos 8 anos, consegui bolsa de estudo aos 12, quando conheci a treinadora, que virou uma mãe para mim", diz o atleta, que iniciou a faculdade de direito, mas parou em razão dos Jogos Olímpicos de 2012.

Agora ele está empolgado com 2016. Quer correr os 100 m, os 200 m e o revezamento 4 x 100 m nos Jogos. Assim, quem sabe ele inspira uma geração e vira herói de outras crianças. O Bolt brasileiro? "Não! Sou Aldemir".


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