Folha de S. Paulo


MINHA HISTÓRIA: MICHEL FERNÁNDEZ, 32

Ciclista cubano refugiado sonha defender o Brasil na Olimpíada

RESUMO Insatisfeito com o regime político de Cuba e apaixonado por uma mulher que tinha conhecido no Brasil, o ciclista cubano Michel Fernández, 32, desertou de seu país durante os Jogos Pan-americanos do Rio de Janeiro, em 2007.

Oito anos depois, o atleta compete pela equipe de Ribeirão Preto e tenta se naturalizar brasileiro. Apesar da proximidade da Olimpíada do Rio de Janeiro, que acontece em agosto deste ano, ele ainda sonha defender o Brasil na competição.

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Eu tinha 24 anos. Descobria coisas novas e achava muito injusto viver em um país que se sustenta com mentiras. Eles falam uma coisa, mas na verdade é outra. Cuba é um país fechado e a vida é muito precária. A realidade lá é praticamente a dos anos 70 aqui no Brasil. Só que estamos em 2015, e o mundo é outro.

A parte boa de Cuba é que todas as modalidades são muito disseminadas. O Fidel [Castro] gosta de esporte. Qualquer cidadezinha tem escola de todos os esportes. Antes de praticar ciclismo, eu jogava beisebol, que é tão popular quanto o futebol aqui. Depois fui para o caratê, basquete e esgrima até chegar ao ciclismo, em que fiquei. Nessa época, eu tinha nove anos.

Essa é uma modalidade que exige muito. Quando cheguei à seleção cubana [de ciclismo], eu treinava até quatro horas no período da manhã. À tarde, eu fazia pelo menos uma hora de academia. Era tudo muito regrado.

Há toda uma estrutura à sua disposição: velódromo, alojamento, academia, além de técnicos, médicos e fisioterapeutas. São equipamentos de baixa qualidade, mas tudo está organizado, então funciona.

Aqui no Brasil, há dinheiro, mas não existe vontade de fazer as coisas. Não tem planejamento, carinho e uma visão a longo prazo. Aqui, mesmo as empresas querem tudo na hora e não é assim. Você tem que plantar para colher, entendeu?

Em Cuba, uma das regras é que você não pode se dedicar ao esporte sem estudar. Eu estava na seleção cubana e fazia uma faculdade de educação física voltada para atletas. Ia duas vezes por semana às aulas para facilitar os treinamentos. Eles sabem que ser atleta é difícil. Você tem que se dedicar, mas é preciso também descansar.

Em 2006, conheci uma mulher em São Paulo enquanto participava de um campeonato panamericano. Estava com o uniforme de Cuba, o que chamou a atenção dela. Ela puxou assunto e aí tudo começou. Voltei para o meu país de origem e, por quase um ano, trocamos e-mails. Eu pagava um dólar para usar a internet por meia hora, e um dólar em Cuba é muito dinheiro. Equivale a 25 pesos, o que é bastante. Às vezes ela reclamava porque eu escrevia pouco.

Eu queria melhorar de vida e a paixão me animou. Em 2007, voltei ao Brasil para competir nos Jogos Pan-americanos do Rio e decidi ficar no país.

VIDA NOVA

Eu não sabia como me virar aqui, mas a minha então namorada e hoje mulher tinha amizades e pediu a um vizinho nosso que pesquisasse sobre o que devíamos fazer. Fomos até a Polícia Federal e contamos a nossa história. Eles nos encaminharam até a Caritas [Arquidiocesana de São Paulo, Organização Não Governamental ligada à Igreja Católica, que acolhe refugiados], no centro de São Paulo, e começamos o processo de refúgio. Depois de três meses, o Brasil me acolheu como refugiado político.

Sempre fui bem recebido aqui. O meu vizinho, que eu mal conhecia, me levou até a Polícia Federal. Ele pesquisou tudo.

Não fiquei com medo de retaliação porque Cuba tem muitos desertores. Muitos atletas, médicos e funcionários públicos já desertaram e nunca houve represália.

Enquanto meu processo corria, o mesmo vizinho que me orientou quando cheguei ao Brasil, Abel Ferreira, me ofereceu um emprego em uma loja de chaveiro, pagando um salário mínimo.

Quatro anos depois, eu pedi a residência permanente. Consegui e agora espero a naturalização. Eu quero representar o Brasil no ciclismo.

Sou um atleta mais de velódromo e já mostrei em várias corridas que tenho condições de competir pelo Brasil. Já se passaram mais de seis meses desde que fiz o pedido, mas ainda tenho esperança de participar da Olimpíada [em agosto deste ano]. Falta pouco tempo, está difícil. Mas tenho esperança.

Costumo treinar de quatro a cinco horas por dia e defendo a equipe de Ribeirão Preto, onde vivo com minha mulher e minha filha brasileira, de dois anos e meio.

Há mais de oito anos, não vou a Cuba e, por isso, tenho saudade da minha família. Depois de oito anos fora do país, eles liberam para voltar. No mês que vem, vou pedir permissão para visitá-los em Cuba.

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RAIO-X

Michel Fernández
Nascimento: 21.mai.1983 (32 anos), em Cidade Matanzas, Cuba
Modalidade: ciclismo de estrada
Equipe: Ribeirão Preto


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