Folha de S. Paulo


Detalhes revelados mostram crueldade do ataque de 1972 em Munique

Kurt Strumpf - 5.set.1972/Associated Press
Terrorista palestino em terraço da Vila Olímpica, em Munique (Alemanha), que rendeu atletas israelenses no local. Na tentativa de resgate dos reféns, 11 atletas israelenses, 5 palestinos e um policial alemão morreram no episódio mais sangrento da história do esporte. *** FILE--A gunman wears a hood over his face as he stands on the balcony of the building where a group of Palestinian gunmen held Israeli athletes hostage at the Munich Olympic Village Sept. 5, 1972. The 20-hour standoff ended in a botched rescue effort at the airport. In all, 11 Israeli athletes, five of the Palestinians and a German policeman died. (AP Photo/Kurt Strumpf) Retransmitida em 04.09.2002 pela AP: ** FILE ** A Sept. 5, 1972 file photo shows a member of the Palestinian terrorist group who seized members of the Israeli Olympic team at their quarters at the Munich Olympic Village as the person appears with a hood over his face on the balcony of the village building where the hostages were held. The 20-hour standoff ended in a tragically botched rescue effort at the airport. In all, 11 Israeli athletes, five of the Palestinians and a German policeman were killed. This Thursday, Sept. 5, 2002 sees the 30th anniversary of the tragedy. (AP Photo/File/Kurt Strumpf) ** B/W ONLY**
Terrorista palestino em terraço da Vila Olímpica, em Munique-1972

Em setembro de 1992, duas viúvas israelenses foram à casa de seu advogado. Quando elas chegaram, o advogado lhes contou ter recebido algumas fotografias, em viagem recente a Munique, mas acreditava que as duas não devessem vê-las. Quando insistiram, ele as instou a chamar um médico, que deveria estar presente quando as vissem.

Ilana Romano e Ankie Spitzer, cujos maridos estavam entre os atletas israelenses sequestrados e assassinados por terroristas palestinos nos Jogos Olímpicos de 1972 em Munique, rejeitaram também essa recomendação. As duas puderam ver fotos cuja existência havia sido negada a elas por décadas, e depois concordaram em jamais discutir publicamente aquilo que haviam visto.

O ataque à Vila Olímpica continua a ser um dos mais horripilantes episódios da história do esporte. Os oito terroristas, membros de uma das alas da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), invadiram os apartamentos em que os atletas israelenses estavam hospedados, na madrugada de 5 de setembro de 1972. Isso deu início a um pesadelo internacional que durou mais de 20 horas e terminou com um tentativa de resgate fracassada e desastrosa.

O tratamento a que os reféns foram submetidos era há muito alvo de especulação, mas agora começa a emergir um relato mais vívido - e perturbador - do ataque. Pela primeira vez, Romano, Spitzer e outros familiares de vítimas estão escolhendo falar abertamente sobre documentos desconhecidos do público, em um esforço para conquistar o reconhecimento que acreditam que seus entes queridos mereçam.

Entre os detalhes mais perturbadores estão o espancamento de integrantes da equipe olímpica israelense, e a castração de pelo menos um deles.

"O que eles fizeram foi cortar seus órgãos genitais por sob a roupa de baixo, e torturá-lo", disse Romano sobre seu marido, Yossef. A voz dela ganhou força.

"Você consegue imaginar os nove outros reféns sentados ao redor, amarrados?", ela prosseguiu, falando em hebraico através de um intérprete. "Eles tiveram de assistir a isso".

Romano e Spitzer, cujo marido, Andre, era treinador de esgrima na Olimpíada de Munique e morreu durante o ataque, descreveram pela primeira vez a extensão das crueldades praticadas em uma entrevista para "Munich 1972 & Beyond", documentário que está por chegar aos cinemas e relata a longa luta das famílias das vítimas para conquistar reconhecimento público e oficial aos seus entes queridos. O filme deve ser lançado no começo do ano que vem.

Em entrevistas subsequentes ao "New York Times", Spitzer explicou que ela e os familiares de outras vítimas só descobriram detalhes do tratamento que eles sofreram 20 anos depois da tragédia, quando as autoridades alemães divulgaram centenas de páginas de relatórios cuja existência anteriormente negavam.

Spitzer disse que ela e Romano, como representantes de um grupo de familiares, primeiro viram os documentos naquele noite de sábado em 1992. Uma das filhas de Romano estava para se casar apenas três dias depois, mas Romano não considerou a ideia de postergar o dia marcado para ver as fotos - ela já tinha esperado demais.

As fotos eram "tão ruins quanto eu poderia imaginar", disse Romano. (O "New York Times" teve acesso às fotos mas optou por não publicá-las dada sua natureza explícita.)

Yossef Romano, campeão de levantamento de peso, levou um tiro ao tentar resistir aos agressores, no começo do ataque. Depois, foi deixado para morrer diante dos demais reféns, e castrado. Outros dos reféns foram espancados e sofreram ferimentos sérios, entre os quais fraturas, disse Spitzer. Romano e mais refém morreram na Vila Olímpica; os outros nove foram mortos durante uma tentativa fracassada de resgate depois que foram conduzidos a um aeroporto próximo, em companhia de seus captores.

Não está claro se a mutilação de Romano aconteceu antes ou depois de sua morte, disse Spitzer, ainda que Ilana Romano tenha dito acreditar que aconteceu depois.

"Os terroristas sempre afirmaram que não estavam lá para assassinar pessoa alguma - só queriam libertar seus amigos da prisão em Israel", disse Spitzer. "Disseram que foi só por causa do resgate fracassado no aeroporto que assassinaram os demais reféns, mas isso não é verdade. Foram lá para machucar pessoas. Foram lá para matar".

Por boa parte das duas últimas décadas, Spitzer, Romano e Pinchas Zeltzer, o advogado, preferiram manter os detalhes sangrentos em sigilo. Quando Romano voltou para casa naquela primeira noite, disse às filhas que as fotos eram "difíceis" e que elas não deveriam perguntar a respeito. As filhas concordaram.

Em diversos momentos dos 20 anos seguintes, disse Romano, ela fez referências ocasionais à mutilação de seu marido, mas sempre manteve ocultas as fotos do episódio.

De acordo com Spitzer, desde o começo havia confusão quanto ao acontecido com as vítimas do ataque. Os corpos das vítimas foram identificados por parentes ou amigos em Munique - Romano disse que um tio do marido identificou seu corpo, mas que só viu o rosto - e, de acordo com as leis judaicas, os corpos foram sepultados quase imediatamente depois de seu retorno por avião a Israel.

Já que boa parte da atenção das autoridades israelenses depois do ataque se concentrou nos erros e violações de segurança das autoridades alemãs e olímpicas que facilitaram o ataque terrorista, o sofrimento das vítimas do ataque só era prioridade para suas famílias.

"Pedimos mais detalhes, mas fomos informados, repetidas vezes, de que não havia coisa alguma a revelar", disse Spitzer.

Em 1992, porém, depois de conceder uma entrevista a uma TV alemã sobre o 20º aniversário do ataque na qual havia expressado frustração por não saber ao certo o que havia acontecido com seu marido e os colegas dele, Spitzer foi contatada por um homem que disse trabalhar para uma agência do governo alemão que tinha acesso a grande volume de dados sobre o ataque.

Inicialmente, disse Spitzer, o homem, que preferiu manter o anonimato, lhe enviou cerca de 80 páginas de relatórios policiais e outros documentos. Com esses documentos, Zeltzer, o advogado, e ela pressionaram o governo alemão a liberar o resto do arquivo, que incluía as fotos.

Depois de receber o arquivo, as famílias das vítimas processaram o governo da Alemanha, o governo estadual da Baviera e a prefeitura de Munique por "um conceito de segurança deficiente" e "erros graves" que condenaram a missão de resgate, de acordo com a queixa. O processo terminou sendo rejeitado pela Justiça porque o prazo para a queixa já estava prescrito.

Mesmo assim, as famílias concentraram seus esforços em obter um lugar para preservar a memória de seus entes queridos como parte da história do movimento olímpico. Depois de décadas de lobby, as famílias das vitimas comemoraram a decisão do Comitê Olímpico Internacional (COI) e de seu novo presidente, Thomas Bach, este ano, de ajudar a financiar um memorial permanente em Munique. Também há planos para lembrar as vítimas de Munique nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016.

Por enquanto, as vítimas serão incluídas em um momento de recordação de todos os atletas que morreram em olimpíadas; Sptizer e Romano continuam a pressionar que os atletas israelenses de Munique sejam celebrados em separado daqueles que morreram durante outras edições dos jogos, argumentando que suas mortes resultam de um mal sem precedentes.

"O momento em que vi as fotos foi muito doloroso", disse Romano. "Lembro-me de que até aquele dia Yossef era um jovem com um grande sorriso. Lembro-me até hoje de suas covinhas".

Ela hesita. "Aquele momento apagou todo o Yossi que eu conheci", diz.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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