Folha de S. Paulo


Primeiras surfistas do Rio lembram de pranchas 'jangadas' e planejam volta ao esporte

As cariocas Fernanda Guerra, 66, e Maria Helena Beltrão,66, não são celebridades que desfilam para os 'paparazzi' pela praia do Leblon. Na praia do Arpoador, no Rio de Janeiro, contudo, elas são assediadas com frequência e reverenciadas pelos jovens surfistas locais.

Fernanda e Maria Helena foram as primeiras surfistas do Rio de Janeiro nos anos que abriram a década de 1960, justamente na praia do Arpoador, que Fernanda conseguia contemplar da varanda da casa de seus pais.

Ainda adolescentes, com 13 anos, elas conheceram um pequeno grupo de rapazes que há anos "inventavam" o surfe carioca. Arduíno Colasanti, ator que se tornaria conhecido como galã do Cinema Novo, Jorge Paulo Lemann, empresário hoje tido como o brasileiro mais rico do país pela revista "Forbes", e Irencyr Beltrão, conhecido como primeiro "shaper do Rio" e que se casaria com Maria Helena, eram alguns dos jovens que aprendiam por instinto a deslizar sobre as águas em rústicas pranchas que faziam artesanalmente.

"Eu enchia os meninos e pedia para me emprestarem a prancha. O Arduíno era o que tinha mais paciência comigo. Ele me colocava sobre ela e então me empurrava, já que eu não conseguia pegar onda com pés-de-pato", lembra Fernanda, a pioneira das moças surfistas, que agregaria a amiga Maria Helena ao grupo.

"No início, nós éramos as únicas. E passávamos o dia todo na praia. Voltávamos da escola e íamos direto para o Arpoador, e surfávamos até escurecer", conta.

Fernanda diz que o surfe era tão extravagante no Rio de Janeiro daquele tempo que chegou a ouvir a pergunta de um pedreiro: "aonde você vai com essa jangada, menina?".

"Minha prancha pesava uns 14 quilos. Eu tinha que carregar na cabeça, e às vezes dividia o peso com alguém, que segurava na outra ponta. Eu não conseguia dar a volta nela com o meu braço", explica.

Elas surfavam com 'madeirites', feitas de compensado naval, utilizado para a confecção de lanchas. Quem inventou essas pranchas foi Irencyr.

"Não tinha informação, era quase impossível importar equipamentos e não tínhamos com quem aprender a surfar a não ser uns com os outros. Não é como hoje, que tem internet, vídeos", acrescenta.

Elas contam que o cinema norte-americano foi uma influência importante.

"Quando chegavam os filmes de surfe da Califórnia, o Arpoador inteiro ia assistir, e sempre aprendíamos alguma coisa nova. A turma do Arpoador via as vestimentas nesses filmes e ditava a moda no Rio de Janeiro, por exemplo, com calças de marinheiro, bocas-de-sino, biquínis estampados", diz Maria Helena.

"Lembro de uma sessão de cinema que quem fosse com a prancha não precisaria pagar. A gente via manobras que nem sabia que eram possíveis e depois arriscava no mar", recorda Fernanda.

Em suas casas, ao contrário do preconceito que poderia se esperar em um momento em que o esporte era visto como atividade masculina, elas eram incentivadas pelos pais a praticarem o surfe.

"Nossos pais eram estrangeiros, que são bem mais liberais. No Arpoador, quase todos éramos filhos de pessoas de fora do país: minha mãe era lituana, a mãe da Fernanda era americana", argumenta.

A casa de Fernanda foi a primeira sede da Federação Carioca de Surfe, e seu pai, Walter Guerra, ajudava a turma com as burocracias e foi eleito vice-presidente honorário.

Arquivo Pessoal
Fernanda Guerra surfando no Rio de Janeiro
Fernanda Guerra surfando no Rio de Janeiro

Foi Walter que negociou em 1965 com o então governador da Guanabara, Negrão de Lima, para que um trecho de 200 metros de praia do Arpoador permanecesse aberto depois das seis horas da tarde. Nesse horário, os militares fechavam o local.

"Quem queria sair da água às seis da tarde? Ninguém. E os militares iam até as pedras e ficavam chamando, e a gente tinha que sair remando rapidinho do meio do mar", diz Maria Helena.

E o surfe não saiu da vida de suas madrinhas.

Em setembro, elas se reuniram com parte do pessoal da época para comemorar os 50 anos da criação da Federação.

"Alguns já morreram, outros moram fora do país, mas nós continuamos organizando almoços e nos encontrando, muitas vezes na própria praia, e então contamos histórias, lembramos juntos de alguns eventos, sabemos como está a vida de cada um", explica Fernanda.

Maria Helena parou de surfar em meados dos anos 1970, porque a praia ficou muito "crowdeada" (cheia) e para cuidar da filha então recém-nascida, que hoje é oceanógrafa e começou a praticar o surfe há alguns anos. Ela conta que a sessão de fotos que fez para a Folha, segurando uma das pranchas do marido Irencyr na praia, lhe deu ânimo para talvez voltar a "pegar umas ondinhas."

"Minha juventude foi a melhor possível por causa do surfe e dos amigos. Às vezes eu tenho pena dos meus filhos, por não terem tido a possibilidade de viver o Arpoador como eu", afirma.

Na conversa com a reportagem, Fernanda vibrou com a vitória de Gabriel Medina na etapa da França do Mundial de surfe e exaltou a nova geração do esporte nacional. Aficionada, ela tinha na ponta da língua a lista dos primeiros colocados da competição e o que os brasileiros precisam fazer para levar o título.

Recuperada de problemas de saúde que quase a deixaram sem andar há alguns anos, ela planeja a volta ao surfe em pouco tempo.

"Pegar onda é bom demais. Já coloquei minha prancha para fora", diz, comemorando que sua neta de 14 anos está começando a praticar o esporte.

"O surfe nunca vai sair da minha vida", conclui.


Endereço da página:

Links no texto: