Folha de S. Paulo


Punição da Fifa impede 'Messi americano' de jogar no Barcelona

Arquivo Pessoal/The New York Times
Ben Lederman, 15, durante treino do Barcelona
O norte-americano Ben Lederman, 15,

Ben Lederman ainda acorda cedo para a escola a cada manhã, para que possa terminar as aulas em tempo para seus treinos de futebol. Ele continua a treinar todos os dias em La Masia, a famosa academia de juvenis do FC Barcelona. E ainda passa boa parte de seu tempo em um lugar no qual ocasionalmente esbarra em astros como Lionel Messi.

Mas Lederman, cuja família inteira se mudou da Califórnia para Barcelona em 2011 na esperança de que ele viesse a se tornar o primeiro futebolista norte-americano a defender o clube da elite do futebol mundial, está proibido há mais de um ano de jogar em partidas oficiais pelas equipes juvenis do Barcelona. Quando a Fifa puniu o Barcelona no segundo trimestre do ano passado pelo que a organização que controla o futebol mundial definiu como transferências internacionais ilegais, uma das consequências menos divulgadas da decisão foi que jovens futebolistas de talento como Lederman, jogando fora de seus países em times de todo o planeta, logo viram suas inscrições revogadas (ou a renovação de suas licenças recusada), quando clubes e federações correram a adotar regras de elegibilidade que por muito tempo haviam ignorado.

Isso colocou jogadores como Lederman, e suas famílias, em um estranho limbo futebolístico. Lederman, 15, continua a treinar com a equipe mas não tem autorização para defendê-la em partidas oficiais. Depois de meses de apelos à Fifa (todos os quais rejeitados), os Lederman estão considerando uma abordagem diferente para tratar de seu problema: um apelo ao Tribunal Arbitral do Esporte para contestar o conceito básico da regra que gerou a dificuldade.

"Isso está acabando com ele", disse Danny Lederman, o pai de Ben, sobre a proibição de participação em jogos oficiais imposta ao seu filho. "E, como pai, também está acabando comigo, vê-lo sofrer desse jeito. Um ano? Os garotos precisam jogar; ele treina, treina, treina, mas não tem direito de jogar? Isso não é certo".

Lederman acrescenta que "entendo que a regra tinha por objetivo proteger meninos contra serem afastados de suas famílias. Mas a nossa família decidiu, unida, que nos mudaríamos para a Espanha. Por que caberia à Fifa dizer onde nossa família tem de morar se desejamos que nosso filho jogue futebol?"

Esse é o argumento central dos Lederman, e de outras famílias, contra o chamado Artigo 19 da Fifa.

Ben Lederman

A regra, criada em 2011, tem intenções puras. Foi adotada em larga medida para impedir que agentes e clubes tragam crianças de países menos desenvolvidos, não europeus, para testes envolvendo grande número de atletas na Europa (e em muitos casos as abandonem caso não sejam selecionadas por um time). Em termos claros, a regra dispõe que os jogadores juvenis não têm direito de se registrar como parte de um time de fora de seu país de origem até que façam 18 anos.

A Fifa autoriza três exceções: se um jogador vive a menos de 50 quilômetros de uma fronteira nacional e o time no qual ele pretende jogar fica também a menos de 50 quilômetros da mesma fronteira; se um jogador está se transferindo de um país europeu para outro e tem pelo menos 16 anos; ou se a família de um jogador está se mudando para outro país "por motivos não relacionados ao futebol".

Essa última exceção vem sendo tema de vigoroso debate —o que significa "não relacionados"?—, mas a realidade, pelo menos segundo o apurado em entrevistas com pais, treinadores e dirigentes esportivos, é que nos anos anteriores às sanções contra o Barcelona, a maioria das federações nacionais não fazia grandes esforços para pesquisar a situação de jogadores juvenis que um clube desejasse registrar. A regra era aplicada na melhor das hipóteses apenas esporadicamente.

Existia, para todos os efeitos, um "mercado livre", de acordo com um executivo de futebol: os grandes clubes importavam jovens talentos de todo o mundo, frequentemente atraindo-os por meio de "pré-contratos" ou de outras formas de incentivo financeiro às suas famílias. (Messi começou a jogar no Barcelona aos 13 anos, depois que o clube fechou acordo com sua família para bancar um tratamento com hormônios de crescimento para o menino.)

Um importante dirigente de futebol da Catalunha, falando sob a condição de que seu nome não fosse mencionado porque não estava autorizado a discutir a questão publicamente, disse que a política da federação local havia anteriormente sido a de uma despreocupada ignorância. A federação chegou a informar aos clubes que, depois das sanções contra o Barcelona, as regras "começariam a ser 100% impostas" em março de 2015.

"Antes da proibição da Fifa, deixávamos todo mundo jogar e pronto", disse o dirigente. "Solicitávamos todos os documentos legais, mas não os revisávamos com muita severidade".

Oriol Sala, que dirige uma escolinha particular de futebol chamada Kaptiva, na Espanha, disse que costumava informar às famílias de seus potenciais alunos que seus filhos poderiam facilmente conseguir inscrição como juvenis na federação espanhola ou na catalã de futebol, e jogar por times espanhóis caso impressionassem os olheiros destes em jogos ou treinos. Desde que a Fifa decidiu punir o Barcelona, porém, diz Sala, "todo o meu modelo de negócios teve de mudar".

Ben Lederman

"Realizamos dois treinos por dia, temos treinadores de primeira linha e treinamento especializado", ele disse sobre o programa de sua escola —que cobra 25 mil euros por jogador por um programa de seis meses de treinamento. "Mas", acrescentou, "agora não podemos mais garantir inscrição na federação. Não é mais possível".

A mudança abrupta de atitude por parte dos clubes e federações preocupados em não violar as normas da Fifa causou dificuldades para muitas famílias. Cintia Cuperman, médica de Miami, levou seus dois filhos à Espanha em 2013. Um deles, Nico, se saiu bem na peneira e foi aceito pelo programa Escola, do Barcelona, que serve de porta de entrada para as escolinhas de futebol do time.

Nico mostrou excelente desempenho no Escola e foi selecionado por outro time local, que conseguiu registrá-lo na federação; ele começou a jogar oficialmente pela equipe.

Em fevereiro, depois que o recurso do Barcelona contra as sanções foi rejeitado, a inscrição de Nico foi cancelada.

"De repente, o clube começou a me pedir 10 tipos diferentes de documentos, prova de emprego e toda espécie de coisa", disse Cuperman. "Fiquei sem ação. Quando conseguimos a inscrição dele, e vi que os formulários solicitavam esse tipo de informação, o pessoal do clube me disse para escrever qualquer coisa, porque ninguém conferia".

Por falta de opções depois que teve sua inscrição revogada, Nico recentemente retornou aos Estados Unidos.

Situações semelhantes acontecem também em outros países. George, o filho de Art Acosta, jogou pela seleção sub-15 dos Estados Unidos. Em um comunicado à imprensa divulgado alguns meses atrás, a U. S. Soccer, federação nacional de futebol dos Estados Unidos, identificou o time de George como o Estudiantes de La Plata, um dos maiores clubes da Argentina.

Na verdade, de acordo com Art Acosta, seu filho estava treinando nas equipes juvenis do Estudiantes mas jogando por um "segundo time" parcialmente afiliado ao clube, o que não requer que ele conte com o registro oficial da Fifa. Depois de ver as dificuldades que jovens jogadores estavam encontrando para conseguir inscrição na Europa, ele havia decidido "ir para o sul" em busca de um time para seu filho, um meia-atacante talentoso. Acosta imaginou que essa seria uma solução mais fácil. Mas rapidamente descobriu que não era esse o caso.

"Antes de tudo isso, havia brechas na regulamentação em toda parte, e você podia jogar em qualquer lugar", ele disse. "Agora é literalmente impossível".

Já que a Fifa está tendo de enfrentar outras crises, as perspectivas de mudança no Artigo 19 não são claras. Há certas questões logísticas quanto à regra que precisam ser resolvidas - o período de processamento de inscrições, cada vez mais longo, poderia ser encurtado, facilitando os recursos -, mas é mais difícil prever alterações significativas do texto.

Lucas Ferrer, advogado radicado em Barcelona e especialista em casos esportivos, trabalhou em processos relacionados ao Artigo 19, para clubes como o Barcelona e jogadores, e diz que está cético quanto à chance de sucesso de um possível recurso ao Tribunal Arbitral do Esporte.

"Creio que a chance de que isso dê certo é mínima", ele disse. "A regra é uma regra legítima - foi aprovada muitas vezes, e o Tribunal Arbitral do Esporte a confirmou muitas vezes em outros casos".

"A única maneira de derrubar a regra seria por meio de negociação com a Fifa ou, possivelmente, por meio de um recurso à Justiça comum", ele acrescentou.

Essa forma de contestação judicial continua a ser possível mas, por enquanto, as famílias permanecem no limbo e vêm adotando diversas abordagens. Algumas delas, como Cuperman e seu filho, desistiram e voltaram para seus países. Outras continuam a esperar que uma porta se abra; um pai, cujo filho continua a esperar pelo resultado de seu recurso quanto à rejeição de sua inscrição como atleta de um time da Europa Central, não quis que seu nome fosse citado no artigo porque desejava "ficar fora do radar" e estava preocupado com uma reação negativa da Fifa.

"Esperamos um resultado para breve", ele disse.

Os Lederman decidiram ficar na Catalunha. Dean, o irmão mais velho de Ben, está concluindo o segundo grau em uma escola de Barcelona, e a família não quer promover mais uma mudança antes que ele se forme.

"Temos raízes aqui, temos empregos, temos vistos", disse Danny Lederman. "Escolhemos como família que viveríamos aqui. É por isso que essa situação é tão frustrante".

Se Ben Lederer fosse um músico ou bailarino de talento, disse seu pai, não haveria contestação à ideia de sua família se mudar para algum lugar onde ele pudesse aprender com os melhores
professores do mundo. No futebol, porém, uma família não pode decidir em que país prefere que seu filho jogue. O Barcelona ofereceu apoio aos Lederman, mas depois que o clube foi derrotado em seu recurso quanto às sanções, não há muito que possa fazer.

Ferrer recorda o caso de uma família para a qual trabalhou em um recurso sobre o Artigo 19, não muito tempo atrás. A família tinha dois filhos, e os dois meninos eram atletas talentosos, um no basquete e o outro no futebol.

Isso queria dizer que "um deles, o menino do basquete, estava todo dia treinando em seu clube, aprendendo com os treinadores e defendendo a equipe em jogos", ele disse. Ferrer soltou um suspiro.

"O outro? O outro ficava em casa chorando", ele acrescentou.

Albert Olivé/Efe
Messi durante jogo do Barcelona contra o Getafe, pelas semifinais da Copa do Rei de 2007
Messi durante jogo do Barcelona contra o Getafe, pelas semifinais da Copa do Rei de 2007

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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