Folha de S. Paulo


Atleta da Serra Leoa enfrentou guerra e ebola para ser artilheiro nos EUA

Columbus Crew SC
Kei Kamara, jogador de Serra Leoa que hoje joga no time amercicano Columbus Crew SC. (Photo Columbus Crew SC.) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Kei Kamara, nascido na Serra Leoa, durante partida pelo Columbus Crew, dos EUA

Artilheiro da Major League Soccer, a principal liga de futebol dos Estados Unidos, Kei Kamara se acostumou a ouvir explosões e tiros quando era criança em Serra Leoa.

A mãe havia ido para os Estados Unidos, fugindo da guerra civil que matou 50 mil pessoas e destruiu a infra-estrutura do país africano.

Hoje com 30 anos, o atacante do Columbus Crew continua querendo o mesmo dos tempos em que morava no país natal: respeito.

"Eu ainda posso ouvir na minha cabeça os sons da guerra. Não perceberam a devastação que estavam causando em Serra Leoa. Não respeitaram as pessoas do país. A mesma coisa quando estourou o ebola. Eu estava lá. As autoridades não levaram a sério", afirma o atacante, autor de 18 gols na temporada. "Sete enfermeiras do hospital onde nasci morreram por causa do vírus."

Kamara cresceu acreditando sempre ter algo a provar. Ao receber asilo político nos Estados Unidos, aos 16 anos, pôs na cabeça que tinha de aproveitar uma chance que milhões de compatriotas não receberam. Quando ganhou bolsa da California State University para jogar futebol, ouviu pela primeira vez a pergunta sobre que seleção defenderia se fosse profissional.

Kei Kamara diz sentir um frio na barriga só de pensar na possibilidade de levar Serra Leoa pela primeira vez para uma Copa do Mundo.

"Os Estados Unidos salvaram a minha vida. Me deu tudo o que eu tenho. Mas eu sou de Serra Leoa. Tenho a missão de ajudar minha terra dentro e fora de campo."

Ele é o principal nome do futebol no país, mas não vem sendo chamado para a seleção. Entrou em conflito com os dirigentes porque considera que falta respeito com os jogadores. Os locais para treinos não são adequados. Os uniformes são de segunda mão. Os atletas não recebem o conforto desfrutado pela cartolagem nas viagens.

Kamara reclamou pela imprensa. Recusou-se a cumprimentar o ministro dos Esportes do país. Passou a ser ignorado nas convocações.

"Fico bravo com algumas coisas. As pessoas não percebem o que o futebol pode fazer pelas pessoas. Acredito que o futebol tem potencial para salvar Serra Leoa. Mas é preciso seriedade e respeito."

Corey Ashton Betke/Columbus Crew SC
Kei Kamara, jogador de Serra Leoa que hoje joga no time amercicano Columbus Crew SC. (Photo Corey Ashton Betke/Columbus Crew SC.) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Kei Kamara disputa a liga americana no auge de popularidade da competição

A equipe ocupa a 104ª posição no ranking da Fifa e tem mandado seus jogos na Mauritânia, por medo do ebola.

"Nós somos bons no futebol. Podemos nos classificar. Futebol é mais forte que uma religião e pode mudar como as pessoas de Serra Leoa veem a si mesmas."

Kamara criou a ONG "Escolas para Salone" ao lado do também jogador da MLS Mike Lahoud (Philadelphia Union). Eles constroem escolas em vilas da nação africana. "As crianças merecem a chance de aprender e, pelos resultados que temos, elas querem isso. Nós só colocamos a mão na massa para lhes dar essa oportunidade."

Ele reconhece viver o melhor momento da carreira. Os adversários montam esquema tático para anulá-lo em campo. É o principal destaque ofensivo da liga no momento em que esta vive o auge da popularidade internacional, com a chegada de jogadores como Kaká, Steven Gerrard, Frank Lampard, Andrea Pirlo e David Villa.

As partidas são transmitidas ao vivo na Europa e no Brasil, o que tem tornado Kamara uma figura conhecida internacionalmente. Ele teve passagens por dois times ingleses (Norwich e Middlesbrough), sem grande sucesso. "Acredito que até o final desta década a MLS será reconhecida como um dos cinco melhores campeonatos do mundo. Estamos em um momento de grande exposição e isso é muito bom para todos."

No passado, Kamara reclamou que a chegada de veteranos famosos atrapalhava o reconhecimento dos atletas formados localmente e que estavam na liga há mais tempo. Pedindo mais respeito (sempre respeito), disse que os torcedores votavam apenas nos mais conhecidos para a composição da partida das estrelas. Pelo visto, a bronca ficou para trás.

Quando começou a jogar, Kamara via a MLS como uma plataforma para ter a chance de se transferir para a Europa. Ainda é uma vitrine, mas para outra coisa. O atacante quer chamar a atenção para Serra Leoa e o seu futebol.

"Meu país me fez quem eu sou hoje. Gostaria de ser um exemplo para os meninos de Serra Leoa", afirmou.


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