Folha de S. Paulo


Fã de futebol, Galeano denunciou ditadores que usaram o esporte

O escritor uruguaio Eduardo Galeano era um apaixonado por futebol. O esporte foi tema no trabalho do jornalista que morreu nesta segunda-feira (13), aos 74 anos, no Uruguai.

Autor do livro "Futebol ao Sol e à Sombra", que conta causos do esporte mais popular do mundo, Galeano escreveu texto para a Folha durante a Copa de 2002.

O uruguaio lembrou casos de ditadores que usaram o futebol como arma e pediu que "os jogadores não se confundam na hora de escolher entre a guerra ou a festa".

Confira o texto:

A guerra ou a festa

Futebol ao Sol e à Sombra
Eduardo Galeano
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No ano passado, morreu o homem mais velho da Inglaterra. A vida de Bertie Felstead atravessou três séculos. Nasceu no século 19, viveu no 20 e morreu no 21. Ele era o único sobrevivente de uma célebre partida de futebol, disputada no Natal de 1915. Nessa oportunidade, jogaram os soldados britânicos contra os soldados alemães.

Uma bola surgiu, não se sabe de onde, e começou a rodar, não se sabe como, entre as trincheiras. Então, o campo de batalha transformou-se em campo de jogo, os inimigos largaram armas e correram para disputar a bola, todos contra todos e todos com todos.

A magia durou pouco. Aos gritos, os oficiais lembraram aos soldados que estavam ali para matar ou morrer. Passada a trégua futebolística, voltou a carnificina. Mas a bola abrira um fugaz espaço de encontro entre esses homens, obrigados a se odiarem.

A serviço da guerra que estavam incubando, Hitler e Mussolini manipularam o futebol. Nos estádios, os jogadores da Alemanha e da Itália saudavam com o braço estendido para o alto.

"Vencer ou morrer", ordenava Mussolini, e, por via das dúvidas, o time italiano não teve outro remédio senão vencer as Copas de 1934 e 1938. A guerra de conquista alemã e o delírio da pureza racial implicou, também, a purificação do futebol: 300 jogadores judeus foram riscados do mapa. Muitos deles morreram nos campos de concentração alemães.

Anos depois, na América Latina, as ditaduras também usaram o futebol a serviço da guerra contra seus próprios países e seus povos. Em 70, a ditadura brasileira fez sua a vitória da seleção de Pelé: "Ninguém segura este país", dizia a propaganda oficial. No Mundial de 78, num estádio a poucos passos do Auschwitz argentino, a ditadura argentina celebrou "seu" triunfo, enquanto seus aviões jogavam os prisioneiros vivos no fundo do mar.

Há jogos que terminam em batalhas campais, há fanáticos que encontram no futebol um bom pretexto para o exercício do crime e nos alambrados botam para fora rancores acumulados desde a infância, ou desde a última semana. Como costuma ocorrer, é a civilização que dá os piores exemplos de barbárie.

Isso serve para dizer que o futebol incuba ovos de serpente? O espelho não tem culpa do que reflete. A violência que às vezes surge nos campos de futebol quase nunca provém do futebol, embora quase sempre assim pareça.

É revelador o que está ocorrendo na Argentina.

A loucura dos "barras bravas" nada tem de novo, mas se multiplicam os desentendimentos, os tiros, os socos, desde que se desencadeou a atual crise que jogou o país em um abismo.

Os estádios de futebol são os únicos locais em que se abraçam etíopes e eritreus. Durante os torneios interafricanos, os jogadores dessas duas seleções conseguem esquecer por algum tempo a longa guerra que periodicamente ressurge entre seus países.

Antes de cada partida na Copa do Mundo, os jogadores ouvem e cantarolam seus hinos pátrios. Em geral, salvo algumas exceções, os hinos os convidam a matar e a morrer. Esses cânticos marciais proferem terríveis ameaças, convocam à guerra, insultam os estrangeiros e exortam a que se faça picadinho deles ou se sucumba com glória em heróicos banhos de sangue.

Verdade seja dita: a grande maioria dos jogadores não dá bola para as ordens que partem de seus hinos, para os delírios épicos de certos jornalistas que competem com os hinos, nem para as instruções de carnificina de alguns dirigentes e técnicos, nem para os clamores guerreiros de alguns energúmenos nos alambrados. Oxalá os jogadores, ou pelo menos a maioria dos jogadores, continuem se fazendo de surdos neste Mundial. E que não se confundam na hora de escolher entre a guerra ou a festa.


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