Folha de S. Paulo


Recusa marroquina a sediar Copa das Nações tem raízes no preconceito

A Copa Africana de Nações é um dos mais difíceis torneios de futebol continentais do planeta - 54 países disputam múltiplas etapas de grupos e mata-matas para definir os 16 participantes da fase final.

O Marrocos deveria sediar o torneio em janeiro de 2015. Alguns meses atrás, porém, a federação de futebol do país começou a expressar reservas, mencionando o surto do ebola em três países da África Ocidental, e este mês decidiu abandonar o torneio. Em retaliação, a Confederação Africana de Futebol, que comanda o futebol da África, suspendeu o Marrocos e pode determinar punições ainda mais severas ao país.

As razões do Marrocos para se recusar a sediar o torneio parecem derivar de uma reação exagerada, já que o vírus está presente em apenas quatro dos 54 países africanos. Os Estados Unidos, que realizam voos diretos para o Marrocos, sofreram mais mortes por ebola do que a maioria dos Estados africanos. Assim, uma mistura de política, oportunismo e autointeresse parece estar por trás da decisão marroquina.

Para começar, embora o ebola seja claramente uma doença mortífera, está sendo basicamente contido nos três países da África Ocidental que viram o surto inicial (uma variante separada do vírus está ativa na República Democrática do Congo, ainda que sem os mesmos resultados catastróficos, e houve uma segunda morte no Mali esta semana.) Segundo, as seleções dos países afetados não parecem ter grande chance de classificação para o torneio do ano que vem. Ainda que a Guiné tenha chance remota, Serra Leoa está no último lugar de seu grupo e a Libéria já está fora.

Estranhamente, o Marrocos vem hospedando em Casablanca alguns dos jogos que têm a Guiné como mandante na fase eliminatória (a seleção guineana volta a jogar lá na semana que vem), sem mencionar o ebola, e as companhias de aviação marroquinas continuam a realizar voos diários aos países afetados. O governo alega que é mais fácil controlar voos do que estádios repletos de fãs. Mas isso não faz sentido, já que a maioria absoluta do público em jogos da Copa das Nações costuma ser do país sede (há quem estime até 80%).

Ainda mais intrigante é que o Marrocos continuará a sediar a final do Mundial de Clubes da Fifa, no mês que vem. O volume de viagens ao país originadas de fora da região, durante esse torneio, deve apequenar o afluxo que a Copa das Nações criará, mas o Marrocos mesmo assim não considerou necessário cancelar o evento.

Kim Ludbrook - 6.fev.2013/Efe
Jogadores da seleção da Nigéria comemoram um dos gols da vitória por 4 a 1 sobre a seleção de Mali, em jogo válido pela Copa Africana de Nações de 2013, em Durban (África do Sul)
Jogadores da seleção da Nigéria comemoram um dos gols da vitória por 4 a 1 sobre a seleção de Mali, em jogo válido pela Copa Africana de Nações de 2013, em Durban (África do Sul)

Mas pode haver outra razão saliente para isso. Apesar de toda a conversa sobre "irmandade africana" (conte o número de vezes que os dirigentes do futebol marroquino proferem esse tipo de platitude), o Marrocos, como a maioria de seus vizinhos na África do Norte, tem relacionamento difícil com os vizinhos ao sul do Saara. Migrantes africanos, alguns dos quais a caminho da Europa, se queixam frequentemente de assédio, violência e xenofobia.

Sarah El-Shaarawi, editora interina da revista "Arab Media and Society", do Cairo, me disse que boa parte da cobertura do ebola pela mídia árabe vem sendo inflamatória, de modo que a resposta desproporcional do Marrocos se alinha confortavelmente às reações excessivas vistas em outros países.

Percepções preexistentes quase certamente influenciaram o risco percebido de sediar a Copa de Nações. "Qualquer discussão sobre o ebola no norte da África é também inerentemente uma discussão sobre os migrantes do sul do Saara", disse El-Shaarawi. "O Fórum Anfa, uma ONG marroquina, lançou uma campanha de conscientização contra o racismo intitulada 'sou marroquino, sou africano', em resposta direta a crimes de ódio de base racial e a incidentes exacerbados pelo medo do ebola".

Mas em certa medida, os torcedores africanos negros ou subsaarianos são igualmente culpados de rotular os jogadores e torcedores provenientes dos países atingidos pelo ebola. O "New York Times" reportou queixas dos jogadores da Serra Leoa por terem enfrentado um coro de "ebola, ebola", quando eles jogaram contra o Congo. Nos Camarões, futebolistas foram forçados a se hospedar em um hotel sem qualquer outros hóspedes e submetidos a testes de ebola duas vezes por dia. Como aponta o jornal norte-americano, nenhum dos jogadores de Serra Leoa envolvidos vive no país ou joga por um time de lá, e eles tampouco visitaram seu país natal desde o surto.

Fadel Senna/AFP
Ibrahima Sory, da Guiné (dir.), disputa bola com o ganês Andre Ayew durante as Eliminatória da Copa Africana de Nações, em Casanblanca, no Marrocos
Ibrahima Sory, da Guiné (dir.), disputa bola com o ganês Andre Ayew durante as Eliminatória da Copa Africana de Nações, em Casanblanca, no Marrocos

Mas podem existir motivos mais pragmáticos para isso: o turismo responde por quase 10% do Produto Interno Bruto (PIB) do Marrocos, que foi de US$ 104 bilhões em 2013. A Copa das Nações Africanas não trará receita nem perto de comparável. E um caso de ebola bastaria para causar o caos no setor de turismo (pode parecer ridículo, mas pense nos turistas que cancelaram viagens à África do Sul por conta do ebola na África Ocidental.)

Do lado positivo, esses acontecimentos devem dar aos torcedores e aos jornalistas que cobrem o futebol africano motivo para investigar o funcionamento da Confederação Africana de Futebol. A organização é opaca e pouco fez para promover ou desenvolver o esporte no continente. É notável que a maioria dos jogadores que representaram as seleções africanas na Copa do Mundo deste ano joguem fora do continente. A Copa das Nações é um negócio sobre cujos arranjos internos e divisões de lucros pouco sabemos. Quanto dinheiro a confederação fatura com direitos de transmissão e publicidade relacionados ao torneio, e de que forma esse dinheiro é gasto?

Uma das sugestões feitas pelos organizadores marroquinos foi postergar o torneio para a metade do ano. Deixando de lado os seus motivos para tanto, essa pode ser a ideia mais construtiva a emergir de toda a saga, e também pode resultar em maior audiência, porque na metade do ano o torneio não estará competindo com qualquer outro grande evento esportivo.

SEAN JACOBS, sul-africano, é professor-assistente de Relações Internacionais da New School, em Nova York, e co-editor do livro "Thabo Mbeki's World: The Politics and Ideology of the South African President"

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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