Folha de S. Paulo


Aranha diz que filhos foram xingados, mas afirma que faria tudo outra vez

Já tinha sido chamado de macaco muitas vezes em jogos, mas nunca reagi daquela maneira como fiz contra o Grêmio. A gente releva as coisas porque é cobrado para ser profissional. E ser profissional é ouvir, fazer o seu trabalho e ir embora.

Muitas vezes a gente deixa passar batido, não dá importância para as ofensas raciais.

No jogo contra o Grêmio, eu estava muito tranquilo. Tudo mudou no momento em que fui até o árbitro. Eu relatei que estavam me chamando de macaco. Ele respondeu que eu estava provocando a torcida do Grêmio.

Quando fiquei de frente para os torcedores novamente, eles comemoraram. Se sentiram livres para poder continuar. E, por isso, eu fiquei irado, com raiva. O sentimento foi de ódio mesmo.

Eu vi lá que tinham negros me xingando e concordando. Podia ter ido embora. Agora seguir ali e concordar com aquela situação é burrice.

Ricardo Nogueira/Folhapress
O goleiro Aranha, do Santos, durante entrevista no CT do Santos
O goleiro Aranha, do Santos, durante entrevista no CT do Santos

Na hora em que tudo aquilo aconteceu, eu pensei que alguém poderia ter filmado, que teria provas. Eu sabia que alguns não iriam entender, mas muita gente me apoiaria.

Algumas reações depois do jogo, que até hoje acontecem, incomodaram muito mais do que os gritos de macaco no dia. Várias mensagens que recebi. E-mails, ligações, gente xingando. Se você procurar na internet, tem termos racistas em páginas do Facebook com a minha foto.

Ouvi questionamentos sobre o meu apelido até. Assumo Aranha, por que não macaco? Não é a mesma coisa. Porque quando chama o negro de macaco isso vem lá de trás. Porque o negro não era visto como ser humano, gente. Isso só por ser negro.

Quando éramos escravos, não podíamos revidar, discutir. Não havia lei para nos defender. O certo era ouvir e não falar nada porque assim não apanho. Não vou discutir para não ir para o tronco. Não vou nem olhar para a cara da pessoa que me ofende.

Vai continuar existindo racismo se a gente seguir se acovardando ou sendo passivo. Para poder manter o emprego, para poder estar inserido na sociedade, no grupo de amigos.

Muitas vezes até o negro tem atitudes racistas sem saber que é. Quando? Quando é xingado e ele não revida, não digo na violência, mas com a lei. Quando concorda com certas piadas de mau gosto, ele está sendo racista!

RAP

Comecei a entender, a ter conhecimento das coisas por meio do rap.

Em Pouso Alegre (MG), na minha cidade, ouvia um cara de São Paulo falando nas músicas sobre os mesmos problemas que eu vivia. Ouvia Racionais, Consciência Humana e Thaíde & DJ Hum.

Tem aquelas situações como estar andando numa calçada e uma pessoa vem na sua direção e troca de calçada. Ou segura a bolsa.

Isso é uma atitude racista e acontecia.

O mais impressionante é que eram pessoas pobres, que estavam no mesmo contexto que eu. Você vê que é um vício antigo. A pessoa é branca, mas nem por isso ela tinha mais ou menos do que eu. Mas ela não enxerga isso.

Veja o vídeo

Fotografia CARLOS CECCONELLO Edição DIEGO ARVATE

É claro que eu não reagia sempre. A gente tem que usar a inteligência. Se você não pode provar, tem que pesar. Mas é errado. Mesmo que não consiga provar, tem que marcar posição, você mostra para todo mundo que ninguém vai repetir a atitude e ficar por isso mesmo.

Eu não digo que o Brasil seja um país racista, mas é um país que carrega um vício antigo. Foi o último a abolir a escravidão, então talvez a gente demore mais para se desvencilhar de tudo o que aconteceu. Está diminuindo, mas continua. A gente precisa se manifestar contra o racismo para a pessoa saber que, se ela falar, será punida.

Ouvi que o Grêmio é racista. Não tem isso! Quando eu estava na Ponte Preta, ouvia muito que era o clube dos negros e o Guarani, dos brancos. Mas isso veio porque antes nenhum tinha negros. Os clubes eram só para brancos. Depois, os negros foram entrando. Alguns aceitaram antes que os outros, mas todos começaram só com brancos. É uma coisa só de quem começou primeiro.

PERDÃO

Desde que aconteceu o caso, houve uma pressão da mídia para que eu perdoasse a Patrícia [Moreira, torcedora gremista flagrada proferindo insultos racistas para o goleiro]. Acho que não tinha nada a ver me encontrar com ela.

Como se o meu perdão fosse salvá-la. Não! Ela sabe o que é certo e errado. Ela disse besteiras nas três vezes em que falou. Ela errou, mas já disse que não é racista. Todo mundo sabe que ela não é, mas teve uma atitude que pode influenciar muita gente. Por isso vai ser punida.

O meu perdão a Patrícia teve desde aquele dia. Mas ela deixou a coisa crescer. Em vez de melhorar, de pedir desculpas, de falar que errou, ela tornou a situação pior ao não se manifestar. Falou depois orientada por advogado. Não sabia o que falar.

FILHOS

Meus filhos receberam muitas mensagens ruins depois do caso. Eles foram xingados de macaco. Houve isso na escola.

É difícil porque você tem que ensinar o seu filho a não revidar, a não ser violento. Mas como ensiná-lo a aceitar isso? Não posso deixar ele aceitar. Se eu fizer isso, não serei um bom pai. Conversei com a diretora, e ela disse que ia chamar a atenção, mas ficou por isso mesmo.

Mesmo com essas consequências, não me arrependo da minha atitude.

Para cada pessoa que foi contra o que eu fiz, milhares se posicionaram a favor. Recebi carinho na rua. Eu vi que muita gente tinha coisa guardada, carregava isso dentro dela e tinha vontade de colocar para fora e precisava que alguém desse uma sacudida nesse assunto, dando força para fazer isso.

Se chegou ao ponto que está hoje, em que o negro convive com a normalidade, é porque muita gente apanhou, muita gente morreu, sofreu. Teve muita luta para que eu pudesse ser ouvido hoje.

Antes isso não existia. Porque a gente não era ser humano. Vai dar entrevista, vai ter carro? Não!

A partir do momento em que as pessoas começam a enfrentar, vai ser contido. Não sei se vai deixar de existir, mas vai diminuir.

Pedro H. Tesch/Brazil Photo Press/Folhapress
O goleiro Aranha aponta para torcedores após sofrer ofensa racista em jogo contra o Grêmio
O goleiro Aranha aponta para torcedores após sofrer ofensa racista em jogo contra o Grêmio

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