Folha de S. Paulo


Atletas do taekwondo improvisam com marmita, rifa e bico de garçom

O taekwondo, arte marcial sul-coreana que virou esporte olímpico em 2000, requer flexibilidade, velocidade e explosão de quem o pratica.

Maicon de Andrade, 21, mineiro, caçula de oito irmãos, tem tudo isso. Mas, recentemente, teve de usar suas habilidades em outra ocupação.

Ele trabalhou por quatro meses como garçom em um buffet infantil para compensar o período em que ficou sem receber a remuneração (R$ 1.000) da prefeitura da cidade onde vive e compete.

O emprego não foi opção. Foi desespero. Maicon, atual número 1 do país na categoria acima de 87 kg, teve de adotar a jornada dupla.

Treinava três vezes ao dia e só deixava o batente e a bandeja depois de 0h30.

O valor que recebia para servir clientes não cobria todo seu deficit –apesar das gorjetas–, mas o ajudava a se manter e mandar dinheiro para a mãe, Vitória, que vive no interior mineiro e se recupera de um câncer no seio.

"Um país que vai sediar a Olimpíada [de 2016, no Rio] não pode ser assim. No tempo que eu trabalhei, poderia ter treinado mais", afirmou.

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Maicon personifica a penúria por que passou a equipe de taekwondo de São Caetano, a que mais representantes tem na seleção brasileira, entre outubro e fevereiro.

Nesse período, mais de mil atletas de 21 modalidades patrocinadas pela cidade não receberam ajuda de custo.

O total retido pela prefeitura chegou a R$ 2 milhões.

A situação gerou um protesto e uma passeata composta por atletas, treinadores e pais, que culminou na queda do secretário de esportes, Eder Xavier (PC do B), dia 20.

Os repasses atrasados foram quitados na última semana, mas não evitou que a equipe de taekwondo passasse por péssimos bocados e quase fosse extinta.

Alguns atletas da luta correram risco até de ser despejados dos dois apartamentos onde vivem, que eram pagos com a remuneração.

"Recebi duas notificações de despejo por atraso, mas não tinha de onde tirar dinheiro. Era torcer para que desse tempo de saldar a dívida", relatou o coordenador da equipe, Marcelo Todaro.

Segundo ele, o projeto tem um orçamento mensal de R$ 40 mil, que é dividido para pagar o alto rendimento.

"Já pensávamos em um plano B, como alugar um galpão ou pedir ajuda. Achávamos que ia tudo acabar", confessou Reginaldo dos Santos, também técnico da equipe.

Por muitos dias, a única alimentação dos lutadores era uma marmita.

"Todos os atletas ganham da prefeitura um cartão de vale-refeição, e é possível retirar marmita em alguns estabelecimentos. Deus que me perdoe, mas era fogo comer a mesma coisa todos os dias", recordou-se Maicon.

As agruras também se refletiram na manutenção do alto nível do grupo.

Disputar a seletiva nacional da modalidade, que ocorreu há 15 dias em Vitória, no Espírito Santo, foi muito mais difícil que desferir os chutes característicos do esporte.

Sem dinheiro, a delegação teve de recorrer a rifas de equipamentos e crediários a perder de vista para comprar passagens e reservar hotel.

"Não tínhamos verba nem para pagar as taxas de inscrição dos atletas, que eram de R$ 130 cada", disse o técnico Clayton dos Santos, 32.

"Para comprar a passagem, fomos a uma agência de turismo e pedimos para parcelar o máximo possível. Era o único jeito", continuou.

Segundo Santos, alguns atletas da equipe têm a Bolsa Atleta "mas como ela também estava atrasada, de nada adiantava". O benefício, pago pelo governo federal, teve atraso de três meses.

Depois de alcançado o primeiro objetivo, o de ir a Vitória, havia o segundo: se manter na capital capixaba.

"Tínhamos apenas o café da manhã do hotel. Depois, ficávamos à base de bolachas", relatou Todaro.

Mesmo com as dificuldades, seis atletas obtiveram vaga na seleção –cinco como titulares e um na reserva.

Entre eles estava Maicon, que nos meses anteriores fez dupla jornada como atleta e garçom. "A gente não pode parar. É o que sei fazer, não posso desistir", afirmou.

Nos últimos anos, o Brasil obteve feitos inéditos no taekwondo. Natália Falavigna foi campeã mundial em 2005 e bronze em Pequim-2008.

Na temporada passada, o brasiliense Guilherme Dias foi bronze em sua categoria no Mundial de Puebla, no México.

A CBTKD (Confederação Brasileira de Taekwondo) tem previsão de receber até R$ 1,7 milhão da Lei Piva em 2014.


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