Folha de S. Paulo


Tinga sofre com choro do filho, mas perdoa torcedores racistas

Um dia após ser alvo de racismo na cidade de Huancayo, Peru, a 376 km da capital Lima, o volante Tinga desembarcou no Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, com semblante fechado.

Na derrota do Cruzeiro por 2 a 1 para o Real Garcilaso, na estreia do campeão brasileiro pelo Grupo D da Libertadores, a torcida local imitou sons de macaco a cada toque do jogador na bola.

Mesmo chateado, o jogador posou para fotos com fãs e deu autógrafos para quatro torcedores do Cruzeiro que estavam no local.

"Estamos juntos", disse o analista de sistemas Thiago Alves ao jogador, após receber um autógrafo. Tinga fez um sinal de positivo com a mão. Mas não sorriu nenhuma vez.

A maior tristeza de Tinga, porém, é pela família.

"No futebol, você acaba se acostumando com esse tipo de coisa. Mas minha família não está preparada", disse. "Liguei em casa de manhã e soube que meu filho estava chorando e assistindo pela TV, nem mesmo quis ir à escola", contou.

"Eu fiquei chocado, pois estava sendo muito bem tratado. Uma foto minha, inclusive, ilustrava o cartaz promocional da partida, que foi espalhado por toda a cidade", contou o jogador, em entrevista à Folha.

Conformado, Tinga atribui a lamentável manifestação à falta de cultura da população local.

"Foi possível notar que tratava-se de uma população sem acesso à cultura. Pior é quando acontece em países mais desenvolvidos, como na Europa e até mesmo no Brasil", afirmou.

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FOLHA - Você já tinha passado por uma situação de racismo como essa?
TINGA - Há muito tempo, no início de minha carreira, em Caxias do Sul, aconteceu algo assim. Mas não foi algo com tanta força como desta vez, no Peru.

Como você fez para se concentrar no jogo depois disso? Você logo percebeu que as manifestações eram para você?
Eu percebi os sons na hora em que fui assinar a súmula,[Tinga entrou em campo aos 21 min do 2º tempo] e depois as manifestações continuaram. Mas eu estava muito focado em jogar, em vencer o jogo. Não havia o que fazer, não tem jeito. A gente vê tanta coisa errada no futebol, e até no Brasil, como um todo, e continua em frente, não é? Eu
tinha de jogar, de seguir.

Você esperava esse ato em um país tão próximo ao nosso, no ano de 2014?
Cara... O que mais me chocou foi que, horas antes, eu tinha comentado com o Ceará, o Egídio e o Dedé sobe a alegria do povo de lá. Eu estava admirando o comportamento deles, apesar das muitas dificuldades que eles devem viver. A cidade em que jogamos é muito pobre. Eu estava sendo muito bem tratado antes do jogo, nos treinos. Uma foto minha, inclusive, ilustrava o cartaz promocional da partida, que foi espalhado por toda a cidade. Acredito que esse ato seja coisa de uma minoria, que não é um comportamento geral do povo deles.

Você pensa em tomar alguma atitude quanto isso, algum protesto oficial?
Eu não tenho atitude para tomar. Vou fazer o quê? Tenho de continuar jogando, como sempre. Esse fato não muda nada na minha vida. Sigo sendo o mesmo cara de antes.

Você foi alvo de apoio nas redes sociais. A hashtag #FechadocomoTinga foi um dos tópicos mais comentados em redes sociais desde a quarta-feira.
Esse tipo de apoio é uma evolução. Se as pessoas se preocuparam dessa vez, é porque houve uma evolução do nosso povo, porque não é a primeira vez que algo assim acontece. Fico feliz com esse apoio. Mostra que estamos crescendo como povo.

Foi difícil dormir depois da partida?
Eu estou acostumado, para ser sincero, com as dificuldades do futebol. A gente vive vida dura desde cedo no esporte, no que diz respeito ao preconceito. A gente fica um pouco mais cascudo para essas coisas. O que me chateia mais é que a minha família não está preparada para algo assim, não tem a mesma experiência que eu. Liguei em casa de manhã e soube que meu filho estava chorando. Isso é ainda mais chato do que a situação que eu vivi, propriamente.

Que tipo de consequências você espera que esse episódio traga?
Sei que algumas atitudes podem ser tomadas pela Confederação Sul-Americana e espero que o que for decidido seja o melhor para o futebol e para todos.

Como dar um basta a esse tipo de situação?
Eu não tenho a solução. Minha tese, que me leva a fazer cada vez mais para ajudar os outros, é que isso é falta de educação. Por isso, toco meus projetos sociais, onde posso educar aqueles que fazem parte. Para que isso não ocorra mais, o ensinamento vem de casa, onde a gente é criado. A gente reclama sempre do governo, mas isso tem de partir de casa, no convívio. Até porque, o racismo é só uma das questões. O preconceito social, de ter ou não ter algo para poder ser aceito, é ainda mais rotineiro.

Você perdoa aqueles torcedores que imitaram macaco?
Com certeza. Quem sou eu para não perdoar? Muita gente lá se solidarizou comigo, o presidente do clube e o técnico do time me pediram desculpas, mostrando que esse não é o sentimento geral do povo de lá. Foi possível notar que tratava-se de uma população sem acesso a cultura. O pior mesmo é quando isso acontece em países mais desenvolvidos, como na Europa e até mesmo no Brasil.

Luka Gonzales/AFP
Tinga (dir.), do Cruzeiro, disputa bola com Ramon Rodriguez, do Real Garcilaso
Tinga (dir.), do Cruzeiro, disputa bola com Ramon Rodriguez, do Real Garcilaso

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