Folha de S. Paulo


Stents não aliviam dor cardíaca, mostra estudo

GJLP/CNRI
Exame de imagem mostra ação de stent, que desobstrui vasos sanguíneos
Exame de imagem mostra ação de stent, que desobstrui vasos sanguíneos

Um procedimento usado para aliviar dores cardíacas em centenas de milhares de pacientes a cada ano na verdade é inútil para muitos deles, reportaram pesquisadores na quarta-feira (1º).

O estudo deles tem por foco a inserção de stents, pequenas gaiolas de arame usadas para manter abertas artérias bloqueadas. O dispositivo pode salvar vidas quando usado para abrir as artérias de um paciente que esteja sofrendo um ataque cardíaco.

Mas costuma ser usado com mais frequência em pacientes que têm uma artéria bloqueada e sofrem dores no peito, por exemplo ao subir escadas ou caminhar colina acima. Alguns pacientes recebem stents mesmo que não sofram dor alguma e estejam simplesmente apresentando bloqueio de artérias.

Doenças cardíacas continuam a ser a principal causa de morte nos Estados Unidos –790 mil pessoas sofrem ataques cardíacos a cada ano, no país–, e stents são o tratamento principal em virtualmente todos os hospitais. Mais de 500 mil pacientes de doenças cardíacas recebem stents a cada ano para aliviar dores no peito, no cômputo mundial, de acordo com os pesquisadores. E há estimativas ainda mais altas.

Diversas empresas –entre as quais a Boston Scientific, Medtronic e Abbott Laboratories– vendem os dispositivos, e o procedimento de inserção custa entre US$ 11 mil e US$ 41 mil, nos hospitais dos Estados Unidos.

O novo estudo, publicado pela revista médica britânica "Lancet", atordoou os cardiologistas porque contraria décadas de experiência clínica. As constatações causam questões sobre se os stents deveriam ser usados com tanta frequência –se é que deveriam ser usados— para tratar dores no peito.

"Para alguém que usa stents profissionalmente, o estudo é causa de reconsideração", disse Brahmajee Nallamothu, cardiologista cirúrgico da Universidade do Michigan.

William Boden, cardiologista e professor de medicina na Escola de Medicina da Universidade de Boston, classificou os resultados como "inacreditáveis".

David Maron, cardiologista da Universidade Stanford, elogiou o novo estudo como "muito bem conduzido", mas disse que ele deixava algumas questões sem resposta. Os participantes sofriam de bloqueios profundos mas apenas em uma artéria, ele apontou, e foram avaliados depois de apenas seis semanas.

"Não sabemos se as conclusões se aplicam a pessoas com doenças mais severas", disse Maron. "E não se sabemos se as conclusões se aplicam a um período de observação mais longo".

Para o estudo, Justin Davies, cardiologista do Imperial College de Londres, e seus colegas recrutaram 200 pacientes que sofriam bloqueio profundo em uma artéria e dores no peito severas o bastante para limitar sua atividade física - duas razões comuns para o uso de um stent.

Os participantes foram tratados durante seis semanas com remédios que reduzem o risco de ataques cardíacos, como a aspirina, além de uma estatina e de um remédio para pressão, bem como medicamentos que aliviam as dores no peito ao desacelerar o coração ou abrir vasos sanguíneos.

Em seguida, os pacientes passaram por um procedimento cirúrgico, real ou simulado, de inserção de stent. Esse é um dos poucos estudos de cardiologia no qual um procedimento simulado foi usado em pacientes do grupo de controle, para posterior comparação com pacientes que receberam o tratamento real.

Nos dois grupos, os médicos usavam um cateter inserido na virilha ou pulso do paciente e, com orientação por raio-X, posicionavam o cateter na artéria bloqueada. Quando o cateter chegava ao bloqueio, o médico inseria o stent ou, no caso dos pacientes do grupo de controle, simplesmente removia o cateter sem inserir o dispositivo.

Nem os pacientes e nem os pesquisadores que os avaliaram posteriormente estavam informados sobre quem havia e quem não havia recebido o stent. Os dois grupos de pacientes seguiram os procedimentos para esse tipo de intervenção, e receberam medicamentos fortes para impedir coágulos sanguíneos.

Os stents fizeram o que era esperado deles, nos pacientes que os receberam. O fluxo de sangue pela artéria até então bloqueada melhorou consideravelmente.

Quando os pesquisadores testaram os pacientes seis semanas mais tarde, os dois grupos declararam sentir menos dores no peito, e se saíram melhor nos testes de esteira rolante do que havia sido o caso antes do procedimento.

Os pesquisadores constataram, além disso, que não existia diferença real entre os pacientes. Os que passaram pelo procedimento simulado se saíram tão bem quando aqueles que receberam stents.

Cardiologistas dizem que um dos motivos pode ser que a aterosclerose afeta muitos vasos sanguíneos, e aplicar um stent apenas ao maior dos bloqueios pode não fazer grande diferença quanto ao desconforto sentido pelo paciente. As pessoas que reportaram que se sentiam melhor podem estar apenas desfrutando do efeito placebo do procedimento.

"Todas as diretrizes cardiológicas devem ser revisadas", afirmaram David Brown, da Escola de Medicina da Universidade de Washington, e a Rita Redberg, da Universidade da Califórnia em San Francisco, em um editorial publicado em companhia do novo estudo.

As diretrizes clínicas em uso nos Estados Unidos afirmam que o uso de stents é apropriado para pacientes com artérias bloqueadas e dores no peito que tenham tentado a melhor terapia médica disponível, o que significa remédios como os aplicados aos pacientes do estudo.

No entanto, essas diretrizes se baseiam em estudos nos quais os pacientes simplesmente declararam que se sentiam melhor depois da inserção dos stents.

"É impressionante até que ponto o estudo é negativo", disse Redberg sobre o novo trabalho. Porque os procedimentos acarretam certos riscos, entre os quais risco de morte, os stents só deveriam ser usados para pessoas que estão sofrendo um ataque cardíaco, ela disse.

Os stents entraram em uso generalizado nos anos 90 e se tornaram o tratamento preferencial porque são menos invasivos que uma cirurgia de ponte de safena. Mas sua efetividade vem sendo questionada há muito tempo.

Um grande estudo conduzido com verbas do governo federal dos Estados Unidos e codirigido por Maron, mas que não conta com um grupo de controle de pacientes sem tratamento, está em curso no momento para determinar se a medicação pode ser tão efetiva quanto os stents e pontes de safena para prevenir ataques cardíacos.

A explicação, disseram pesquisadores, pode estar no fato de que a aterosclerose é uma doença difusa. Algumas poucas artérias podem estar bloqueadas, e ser reabertas com stents. Mas amanhã um novo bloqueio surgirá em outra artéria, o que pode causar um ataque cardíaco.

Sean Proctor/NYT
O advogado Jim Stevens, que estava prestes a passar por cirurgia para colocar um stent
O advogado Jim Stevens, que estava prestes a passar por cirurgia para colocar um stent

Aliviar as dores no peito, no entanto, parecia ser objetivo diferente, para muitos cardiologistas. Afinal, o coração é um músculo e, se for privado de sangue, doerá.

Muitos pacientes têm artérias coronárias com bloqueios da ordem de 80% ou 90%, e certamente reabrir esses vasos faria com que os pacientes se sentissem melhor.

A ideia de que os stents aliviam a dor no peito está tão enraizada que alguns especialistas dizem antecipar que a maioria dos médicos continue a usá-los, arrazoando que os resultados anunciados se baseiam em apenas um estudo.

Mesmo Davies hesitou em dizer que pacientes como os que ele testou não deveriam receber stents. "Alguns deles não querem usar remédios, ou não os aceitam bem", ele disse.

Os stents são tão aceitos que os cardiologistas norte-americanos se declararam espantados por o conselho de ética ter concordado quanto a um estudo no qual o grupo de controle recebe tratamento simulado.
Mas no Reino Unido, disse Davies, não foi tão difícil obter aprovação para o estudo. E o mesmo se aplica a obter pacientes.

"Há muitas pessoas abertas a pesquisas, e se você lhes diz que está estudando uma questão, elas aceitam fazer parte", disse o pesquisador. Mesmo assim, encontrar pacientes para seu estudo levou três anos e meio.
Os conselhos de ética de hospitais norte-americanos provavelmente resistiriam à ideia, porque realizar procedimentos simulados nos pacientes "viola diretamente as diretrizes", disse Boden.

O efeito placebo pode ser surpreendentemente poderoso", disse Neal Dickert Jr., cardiologista e especialista em ética médica na Universidade Emory.

Alguns anos atrás, por insistência da Food and Drug Administration (FDA), a agência norte-americana de fiscalização e regulamentação de alimentos e remédios, pesquisadores conduziram um estudo de um procedimento invasivo para tratar a pressão sanguínea alta. O grupo de controle recebeu tratamento simulado.

O método estava se tornando popular na Europa, mas o estudo constatou que a pressão havia caído de maneira semelhante nos pacientes que receberam o falso tratamento.

Dickert disse esperar que o novo estudo sobre stents demonstre que os cardiologistas devem conduzir mais experimentos com procedimentos simulados.

"Esse momento pode se provar importante", ele disse.

Mas adotar essa prática nos Estados Unidos pode ser difícil. Os conselhos de ética dos hospitais e universidades provavelmente resistirão, e o mesmo se aplica aos pacientes.

Sean Proctor/NYT
Jim Stevens estava na mesa de cirurgia até que seu médico resolveu voltar atrás, ao considerar o estudo
Jim Stevens estava na mesa de cirurgia até que seu médico resolveu voltar atrás, ao considerar o estudo

"A decisão não cabe só a nós", disse David Goff, diretor de ciências cardiovasculares no National Heart, Lung and Blood Institute.

Ainda assim, os resultados da nova pesquisa levaram pelo menos um cardiologista a reconsiderar suas práticas.

Nallamothu leu com antecedência o novo estudo, na terça-feira. Por coincidência, ele tinha marcado hora para inserir o stent em um paciente, Jim Stevens, 54, advogado em Troy, Michigan, naquele dia.
Stevens tem uma artéria bloqueada, mas o artigo fez com que o Nallamothu reconsiderasse. "Eu o tirei da mesa de operação", disse o médico.

Nallamothu explicou a Stevens e à mulher dele que o stent não era necessário. "Fiquei surpreso", disse Stevens. "Mas me sinto melhor por não precisar disso".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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