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Pais de crianças com doença grave no intestino brigam por transplante

Karime Xavier/Folhapress
Susamar, 31, e o filho Saulo, que perdeu 90% do intestino por enterocolite necrosante
Susamar, 31, e o filho Saulo, que perdeu 90% do intestino por enterocolite necrosante

Saulo Pereira Tobias, um ano e um mês, observa com desconfiança as visitas e esconde o rosto no colo da mãe, Susamar, 31.

Ela conta que o filho está manhoso porque acordou gripado. Muito comum entre crianças nessa época do ano, o resfriado é suficiente para deixar em alerta a equipe do Hospital Infantil Menino Jesus, em São Paulo. Ninguém pode tocar no bebê, no seu berço, cobertor ou brinquedos.

O cuidado extremo é justificado porque o resfriado baixa a resistência de Saulo e o deixa mais suscetível a infecções. O maior risco é que uma infecção comprometa o cateter pelo qual ele se alimenta. Com cinco centímetros de intestino, o bebê não consegue comer e recebe os nutrientes que precisa pelo sangue.

Outras cinco crianças menores de dois anos –Serena, Arthur, Pedro Henrique, Heitor e Maryáh– estão internados na mesma UTI que Saulo. Todos sofrem da síndrome do intestino curto, ou seja, menor que 30 centímetros, quando o normal em bebês são alguns metros. Eles só sobrevivem graças à nutrição parenteral e passam quase todo o tempo conectados ao tubo.

Os médicos do Hospital Infantil Menino Jesus, que se tornou referência na área graças a um convênio com o Sírio Libanês, estão tentando reabilitar o intestino dessas crianças. Isso significa "ensinar" aquele pequeno pedaço de intestino a realizar as funções de um órgão completo com a lenta introdução de outros tipos de alimentação.

Já há casos de sucesso de reabilitação do intestino no Brasil e no exterior. Segundo um estudo realizado em 2016 por um grupo de pesquisadores franceses, a chance de retirada da nutrição parenteral para pacientes com síndrome do intestino curto foi de 73%.

TRANSPLANTE

No entanto, os médicos estimam que em 10% a 15% dos casos a única saída é um transplante do intestino, um procedimento complexo que ainda não foi realizado em crianças no Brasil. Em Miami, principal centro de transplantes de intestino do mundo, a cirurgia e o tratamento chegam a custar R$ 4 milhões.

Sem condições financeiras, os pais das crianças que já receberam indicação para um transplante travam uma batalha contra o SUS na Justiça e fazem campanhas de doações de recursos para levar os filhos para Miami. A família de Saulo só arrecadou até agora pouco mais de R$ 80 mil.

Natural de Belo Horizonte, o menino perdeu 90% do seu intestino antes de completar o primeiro mês de vida, uma situação inesperada depois de uma gestação tranquila. Nasceu com 37 semanas e 4,2 kg, mas não conseguiu mamar, teve uma hipoglicemia (queda de açúcar no sangue) e foi alimentado com fórmula. Sua barriga ficou enorme e ele começou a passar mal.

Os sintomas foram provocados pela enterocolite necrosante, uma doença de causa desconhecida que atinge 10% dos prematuros, mas também bebês nascidos a termo. O intestino dessas crianças é muito imaturo e ainda não desenvolveu uma proteção natural que impede que o órgão seja atacado pelas bactérias que existem normalmente no corpo.

O tratamento clínico é feito com antibióticos e jejum, mas, nos casos mais graves, o intestino é perfurado pela infecção. A área necrosa e precisa ser removida. Mesmo após o procedimento, o intestino de algumas crianças continua necrosando e são necessárias novas cirurgias para retirar uma área cada vez maior.

"Ainda há pouca informação sobre a enterocolite necrosante, apesar de não ser tão rara assim. Os especialistas já identificaram, por exemplo, que o leite materno ajuda a prevenir a doença, porque é digerido mais facilmente e tem anticorpos, mas, mesmo assim, ainda é praxe dar fórmula aos prematuros nas maternidades", diz Simone Rosito, diretora do Instituto Pequenos Grandes Guerreiros. Ela fundou a ONG após perder um sobrinho para a doença.

PESQUISA

A síndrome do intestino ultra curto também pode ter outras causas, como uma má formação congênita. No entanto, mesmo as mães que identificaram os riscos na gravidez disseram à reportagem que não tinham ideia do que viria pela frente e relatam ter descoberto os tratamentos disponíveis praticamente sozinhas.

"A gente vira hacker", diz Priscila Carolina de Carvalho, 27, mãe de Serena, que nasceu com uma má formação e passou por oito cirurgias antes de perder praticamente todo o seu intestino aos seis meses de vida. Com a filha internada em Campinas, Priscila fez contato diretamente com o Hospital Menino Jesus quando soube da possibilidade de reabilitação do órgão. Serena está evoluindo bem e já chegou a ficar seis horas sem a nutrição parenteral.

Alice Centurião Alves, 16, mãe de Maryáh, conta que descobriu na internet a possibilidade de alimentar sua filha com um cateter e teve que exigir que a nutrição parenteral fosse administrada. Também entrou na Justiça para conseguir transferi-la para um hospital com tratamento especializado. "Os médicos em Campo Grande (MS) me disseram que ninguém vive sem intestino. Eles iam deixar ela morrer, mas eu me recusei a aceitar isso", conta.

Menor de idade, Alice veio com a mãe para São Paulo, mas já faz oito meses que cuida sozinha da pequena Maryáh. Priscila largou a faculdade em Campinas e só vê a filha mais velha, de 7 anos, uma vez por semana, quando se reveza com o marido nos cuidados com a caçula. Susamar deixou o esposo e a família em Minas e, desde que Saulo nasceu, dorme na cama de acompanhante da UTI. O Menino Jesus é o quarto hospital em que o bebê fica internado. A mãe nunca conseguiu levá-lo para casa. "Dedico 100% da minha vida para ele", diz Susamar.

SUS

As famílias das crianças que precisam de transplante de intestino ou multivisceral (que inclui também estômago, fígado e pâncreas) estão perdendo na Justiça a batalha contra o Sistema Único de Saúde (SUS) para que a União pague pelo procedimento no exterior.

Desde o fim de 2016, os juízes negaram dois pedidos para que o SUS custeie a operação em Miami, principal centro de referência para o tratamento no mundo. Anteriormente, o Estado já havia sido obrigado a pagar outros cinco tratamentos, beneficiando três crianças e dois adolescentes.

Os juízes decidiram acolher os argumentos da União de que três hospitais no país estão capacitados a realizar o procedimento: Sírio-Libanês, Hospital das Clínicas da USP e Albert Einstein.

Até agora, no entanto, não foi realizado nenhum transplante de intestino pediátrico no Brasil.

"As equipes brasileiras habilitadas foram capacitadas em centros internacionais de referência. Os dois pedidos de novos transplantes serão realizados no Hospital Sírio Libanês e aguardam doadores com peso e sangue compatíveis", informou o Ministério da Saúde.

Para os país das crianças, no entanto, o Brasil não tem uma política para estimular a doação de órgãos de crianças e falta experiência não só no transplante do intestino, mas também no pós-operatório, que é extremamente delicado por conta do risco de rejeição do órgão.

"Somos os primeiros da lista desde fevereiro e o problema é que esse doador nunca aparece. Meu filho está perdendo as condições de fazer o transplante", diz Joseli Alves dos Santos, 33, mãe de Samuel, 1 ano e 7 meses. O menino sofre da síndrome de Berdon, que afeta intestino, estômago e bexiga, e precisa de um transplante multivisceral.

O pai de Samuel, José Gomes Soares, 26, chegou a se acorrentar no corrimão do prédio da Justiça Federal na Avenida Paulista, quando foi julgado o recurso sobre o caso do seu filho. O protesto durou 34 dias, dos quais 16 em greve de fome.

JANELA

Segundo Rodrigo Viana, diretor do instituto de transplantes do Jackson Memorial Hospital, em Miami, existe uma "janela" para o transplante. Ele explica que paciente pode ficar sem condições de ser submetido ao procedimento se tiver complicações muito graves ou se "perder" os acessos às veias principais do corpo por conta de infecções.

"De cada 10 crianças que sofrem de intestino curto, aproximadamente sete a oito vão conseguir reabilitar o órgão, mas em alguns casos o transplante é a única opção", diz Viana, que é brasileiro e se tornou o principal especialista de transplante de intestino do mundo. O instituto que ele preside já realizou mais de 500 procedimentos.

De acordo com João Seda, médico do núcleo avançado de fígado do hospital Sírio Libanês, "não existe competição entre a reabilitação e o transplante e o cuidado com os pacientes é contínuo e prolongado". Ele garante que o Sírio Libanês está apto a realizar o transplante de intestino, mas reconhece que o Brasil pode melhorar os números de doadores.

De acordo com o Ministério da Saúde, ainda não foram registrados doadores pediátricos de intestino no Brasil. Somando os doadores de todos os órgãos, o Brasil teve 26 doadores com menos de dois anos em 2016.

Enquanto o imbróglio jurídico não se resolve, as famílias tentam arrecadar os R$ 4 milhões necessários para levar seus filhos para operar em Miami por conta própria. As campanhas podem ser localizadas no Facebook: Ajude o Saulo, Ajude o guerreiro Samuel, Todos por Maryáh, Unidos pela Serena.


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