Folha de S. Paulo


Uiara Pimenta, 31

De Olívia para Oliver: a história de uma criança transgênero

Resumo A flautista Uiara Pimenta, 31, teve de enfrentar parte da sua família e a direção do colégio onde estuda seu filho, Oliver.

Ele nasceu Olívia em 2009, e desde os quatro anos afirma ser menino, o que levou a mãe a cogitar que fosse um caso de transexualidade.

Aos sete anos, a criança é acompanhada no Instituto de Psiquiatria do HC da USP, onde está prestes a fazer um tratamento para retardar a chegada da puberdade.

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Eduardo Knapp/Folhapress
A flautista Uiara Pimenta, 31, com o filho Oliver, 7
A flautista Uiara Pimenta, 31, com o filho Oliver, 7

Em 2009, eu fiquei grávida. Em outubro, tive uma menina, para quem demos o nome de Olívia, em homenagem à avó paterna dela, que tinha morrido de câncer.

A Olívia sempre foi uma criança bondosa, sensível, mas nunca teve jeitinho de princesa. Tenho outra menina, de três anos e 11 meses, que sempre foi muito princesinha. Mas eu mesma nunca fui menininha, usava calça de skatista, camiseta folgada, então achava o Oliver uma menina normal.

As brincadeiras eram sempre de dinossauro, carrinho, jogos eletrônicos, Pokémon. Aí chegou uma época, quando ele tinha quatro anos e meio, que comecei a sentir uma coisa diferente. Ele se sentava na cama e dizia: "Olha só, mamãe, eu sou menino, sou um herói". E eu dizia: "O que é isso, menina? De onde você tirou isso?"

O pai dele sempre foi muito fechado, filho de policial. Eu percebi que isso estava fazendo mal para o Oliver. Quando ele tinha cinco anos, gravei um vídeo em que eu perguntava para ele: "O que você é?", e ele respondia "Eu sou menino". Levei ele para cortar cabelo bem curto.

Comecei a comprar camisetas de dinossauros, mas ele continuava usando a parte de baixo do departamento feminino. Até que um dia, meses depois, eu comprei um sapato masculino para ele usar numa festa na casa da família do pai. Me chamaram de louca, quiseram me bater. Me acusaram de querer ter um casal e por isso estava influenciando a criança. Jamais! Eu amo menina, queria ser mãe de menina desde o primeiro momento que olhei para a Olivia. Jurei que nunca mais iria na casa da família do pai dele, por mais que a gente ainda seja muito amigos, mesmo separados.

Com cinco anos, prometi para ele que nunca mais ele teria de usar roupa de menina. Ainda assim o estojo dele era rosa, os lápis eram rosa. Ele mastigava os lápis até que saísse a tinta rosa. Postei no Facebook um vídeo de ele ganhando as primeiras roupas de menino, e ficando emocionado. Meu pai falou: "Você tem que tirar isso agora ou vai ser presa! Isso é um absurdo!".

No começo, eu fingi que aceitei numa boa. Fingi porque é muito difícil. Eu não queria que ele visse que eu estava triste. Tinha medo de fechá-lo para o mundo. Ele me implorou, me pediu, vi que não tinha mais saída. Eu entrei em luto em 2015, quando percebi que estava perdendo minha menininha. Mas, ao mesmo tempo, eu tinha que salvar o meu menino que estava surgindo. Eu sempre pensava que se ele sofresse muito bullying, poderia ficar traumatizado.

Trocamos o estojo por um do Homem-Aranha, mas não bastou. Ele estuda numa escola muito tradicional, onde eu também estudei, patrocinada por um banco. Chegou um momento em que ele falava abertamente: "Sou menino", mas as professoras não levavam a sério. Não podia usar o banheiro de menino. Ele começou a ficar rebelde. Cortou o cabelo na frente da classe, jogou guache.

Eu nem sabia o que era transgênero. Sabia de lésbica, gay e era isso. Descobri na internet que havia um centro de transgênero no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP.

Em dezembro de 2014, liguei lá e consegui uma consulta para três meses depois. O Oliver foi e, na frente de 20 pessoas, fez a triagem. Eu tive de explicar, porque ele ficou tímido. Ele continuou vendo a psicóloga do núcleo, uma vez a cada 20 dias. Fez no finalzinho do ano exames para ver se a puberdade está chegando, porque vamos bloquear a puberdade para evitar os primeiros sinais de desenvolvimento feminino, a menstruação, os peitinhos.

Depois, a partir dos 14 anos, se ele quiser, pode-se começar a usar hormônios masculinos. Percebo que há essa cultura no Brasil de que é a mãe que cuida do que a criança vai sentir. Não respeitam a vontade da criança.

Teve um episódio que me ajudou a lidar com isso. Em 2013, quando a irmã do Oliver tinha dois meses de vida, ela pegou H1N1, gripe suína. Ela ficou dois meses na UTI, quase perdi minha menina. Quando ela não morreu, eu fiz um combinado com Deus e com Santa Cecília: se ela vivesse, eu a batizaria de Cecília e aceitaria que meus filhos não são só meus, são do mundo.

Isso me ajudou a superar a questão do Oliver. Hoje eu vejo: o que é ser transgênero perto de uma menina que quase perdeu a vida?

A gente morava com a minha mãe até setembro de 2016. O Oliver ia para a escola sozinho. Os amiguinhos do prédio eram extremamente preconceituosos. Quando viram a mudança dele, diziam "Cala a boca, você é menina!". Ele não queria mais descer para brincar. Os próprios porteiros se recusavam a chamá-lo de Oliver.

Mudamos de casa, e eu nunca vi tanta criança dentro de casa. No final de 2016, a coordenadora permitiu que ele usasse o banheiro masculino. São pequenas vitórias. Ele está muito feliz.

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Transtorno de Identidade de Gênero

O diagnóstico de transtorno de identidade de gênero passa por uma série de avaliações e requer anos de acompanhamento.

O psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do HC da USP, afirma que há dois fatores importantes na avaliação: o sofrimento do paciente e a intensidade da vivência do gênero em que se reconhece.

A avaliação começa por uma triagem para entender por que os pais levaram o filho. "Vejo uma culpa enorme deles", diz Saadeh. "Eles precisam acompanhar a criança conosco para ver o que suas manifestações significam."

Até a puberdade, não há medicação hormonal. Depois ela pode ser atrasada para haver mais tempo de tomarem uma decisão.

"O cuidado com crianças é muito maior. Não determinamos nada, simplesmente favorecemos que elas sejam elas verdadeiramente", diz Saadeh.


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