Folha de S. Paulo


Qual é a doença do mês? Campanhas disputam espaço no calendário

Outubro é rosa, novembro é azul, dezembro é laranja, mas também vermelho. Sociedades de médicos e pacientes e ONGs se acotovelam na disputa por um espaço no calendário para promover os chamados meses de conscientização de algumas doenças.

Mas nem tudo por trás das campanhas, em sua maioria apoiadas por farmacêuticas, é cor-de-rosa. As ações nem sempre se traduzem em mais saúde e, para especialistas, podem levar a consultas e exames desnecessários.

O mais famoso dos meses coloridos, o Outubro Rosa, foi criado há mais de 20 anos e envolvia a distribuição de laços rosas como forma de alertar sobre o câncer de mama, o mais comum entre as mulheres depois do câncer de pele.

A cor do mês

Com o tempo, a causa foi crescendo e ganhando apoio de diversas formas: com a iluminação de monumentos e edificações na cor temática, com corridas de rua ou com mutirões de exames gratuitos. Para as empresas que apoiam a campanha, a lógica é colar a marca em uma causa nobre, explica Ruffo de Freitas Júnior, presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM).

"Esse tipo de câncer tem muito apelo por causa da mulher. Além da chance de cura, elas querem saber se haverá mutilação ou não", diz.

Mas, se em outubro parece haver primazia do câncer de mama, em novembro a história envolve a briga entre duas duas doenças pelo mês e pela cor azul: o câncer de próstata e o diabetes.

Historicamente, o Dia Internacional do Diabetes –celebrado em 14 de novembro– é mais antigo, de 1991, e sua criação contou com o respaldo da OMS (Organização Mundial da Saúde).

A ideia de alargar o período de conscientização diabetes de um dia para um mês inteiro nasceu em 2009, no ABC paulista, relata Márcio Krakauer, da Sociedade Brasileira de Diabetes. Nascia aí um Novembro Azul.

Ante isso, surgia o Moustache November (Movember), ou"novembro de bigode", para levantar fundos contra o câncer de próstata na Austrália, em 2004.

Por aqui, o Instituto Lado a Lado (organização de promoção de saúde), idealizado pela jornalista Marlene Oliveira, começou a fazer campanhas de conscientização sobre o câncer de próstata em 2009. A iniciativa teve apoio da SBU (Sociedade Brasileira de Urologia) e, em 2011, apareceria mais um Novembro Azul.

Não houve acordo entre as partes. Marlene diz que "as duas causas eram importantes, mas cada um ficou de trabalhar do seu jeito, já que não havia harmonia". "Hoje, o Novembro Azul é da próstata."

Em defesa do novembro do diabetes, Krakauer diz que a doença metabólica faz muito mais vítimas do que o câncer de próstata. São estimadas 80 mil mortes anuais por causa do diabetes, contra 14 mil do câncer de próstata.

"Tem que atingir pessoas que não sentem nada e que não querem nem saber sobre diabetes. E a razão de a maioria não querer nem pensar a respeito é o estigma de que diabético não pode comer doce", afirma. Entre as ações do Novembro Azul do diabetes estão shows com artistas diabéticos e não diabéticos, além de palestras educativas.

Tentando repetir o sucesso do Outubro Rosa e do Novembro Azul, outros meses coloridos surgiram, como o Setembro Verde, que incentiva a doação de órgãos, o Dezembro Laranja, do câncer de pele, e o Junho Vermelho, da doação de sangue.

MAIS CONSULTAS

Archimedes Nardozza, presidente da SBU, diz que campanhas como o Novembro Azul (nesse caso, o da próstata) acabam gerando um maior número de visitas no consultório para check-ups. "O homem ainda tem receio de médico. Quem procura é porque um amigo teve câncer ou porque a mulher mandou."

Ele diz que a campanha tem muitos parceiros, "especialmente farmacêuticas e empresas que têm produtos para homens." Uma iniciativa comum são médicos que dedicam um pouco do seu tempo, durante a campanha, a fazer palestras de esclarecimento em empresas. Os honorários, quando existem, são revertidos para a causa.

Mas, para Nardozza, ainda é difícil competir com o Outubro Rosa: "É difícil encontrar alguma celebridade que tope falar sobre câncer de próstata". Para o médico, uma das coisas que deixa o assunto menos atraente é a possibilidade de dificuldades de ereção por causa do tratamento.

EXAMES

Para Rodrigo Lima, médico da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, as campanhas podem também trazer informações equivocadas e levar a exames desnecessários.

"Fazer rastreamento de doenças nesse contexto beira a crueldade. Você pega pessoas assintomáticas, convence elas a fazer um exame falando que é para o bem delas. E quando o exame encontra alguma coisa a ser investigada, a gente fala que só tem vaga para daqui três ou quatro meses."

A questão é complicada, e o SUS carrega parte da culpa, afirma Freitas-Júnior, da SBM. "Estudos nossos mostram que o fato de a mulher do SUS saber precocemente ou não que ela tem câncer de mama não dá a ela uma chance maior de estar viva depois de dez anos", diz o mastologista.

Check-ups e exames sem a presença de sintomas ou sem evidências científicas de que funcionem para rastrear doenças em certas faixas etárias são, inclusive, questionados por várias entidades, como a U.S. Preventive Services Task Force, ligada ao governo americano. Isso porque podem indicar falsos-positivos e gerar angústia e procedimentos desnecessários.

Para Mônica Assis, sanitarista da divisão de detecção precoce do Inca, iniciativas como recrutar mulheres de toda idade para fazer mamografias em outubro é uma má ideia.

"Detectar precocemente não serve de nada se não podemos oferecer o tratamento mais próximo da descoberta do sintoma. A saída não é fazer mamografia indistintamente. Sem critérios, joga-se dinheiro no lixo, alarmando mulheres sem ser efetivo. Há uma superinformação, também com viés mercadológico, de que quanto mais exames, melhor. Mas o certo é quanto melhor indicado os exames, melhor."

"O esforço com cara de solidariedade é uma forma de lucrar mais", diz Lima. "Esse 'campanhismo' todo é um atestado que não estamos conseguindo oferecer um sistema de saúde decente."


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