Folha de S. Paulo


Diagnóstico insensível ou 'na lata' pode atrapalhar tratamento médico

Robson Souza
Edilene Aparecida Bolkart, aposentada por invalidez por causa do câncer, com o seu filho Victor, de 11 anos
Edilene Aparecida Bolkart, aposentada por invalidez por causa do câncer, com seu filho Victor, 11

"Aproveita o teu filho porque você tem pouco tempo de vida." Foi o que disse um médico à costureira Edilene Bolkart, 36, após informá-la sobre uma metástase óssea.

Dois anos antes, em 2011, Edi havia recebido diagnóstico de câncer de mama. Vitor, então com nove anos, estava ao lado da mãe quando ouviu a sentença médica. "Fiquei muito mal, mais por ele ter falado na frente do Vitor. Meu filho reagiu e disse: 'Deus não vai deixar acontecer nada com você, mamãe'", lembra, emocionada.

Não são apenas remédios e procedimentos médicos que podem fazer mal ao paciente e trazer complicações jurídicas a profissionais de saúde. As palavras também têm potencial de causar danos.

Chamado de "iatrogenia da palavra", o tema ainda é pouco conhecido e estudado, mas começa a ser debatido em congressos médicos, como o de geriatria que ocorreu no mês passado em Fortaleza. Iatrogenia significa qualquer complicação ao paciente decorrente do tratamento médico. Por exemplo, interações medicamentosas que podem causar efeitos graves.

Segundo Naira Lemos, assistente social e pesquisadora da disciplina de geriatria da Unifesp, nos últimos tempos o conceito de iatrogenia tem sido ampliado para diversas situações na relação entre a equipe médica e o paciente, inclusive em casos de danos emocionais ou psíquicos.

No congresso, Naira relatou um caso em que o médico gritou no meio do corredor de um hospital público que suspeitava que uma idosa sofria de maus tratos na família, sem prova nenhuma. A filha ficou indignada, chorou e ameaçou processar a instituição.

Ela mesma foi testemunha de uma fala médica "iatrogênica" há 12 anos. Sua afilhada, na época com 30 anos, recém-casada e com um bebê de colo, teve diagnóstico de um tumor cerebral e, durante uma consulta, o marido perguntou ao neurologista o que poderia esperar pela frente. "A morte", foi a resposta do médico.

"Saímos todos atordoados do consultório, chorando muito. Imagina se tivéssemos desistido? Doze anos se passaram e minha afilhada está ótima", conta Naira.

Para Luciana Holtz, presidente do Instituto Oncoguia (ONG dedicada a ajudar os pacientes com câncer), uma fala médica inadequada interfere na motivação e na adesão do paciente ao tratamento. "Pode levá-lo à depressão e tirar o fiozinho de esperança em um momento em que ele está lutando pela vida."

Segundo ela, é muito comum os pacientes de câncer se queixarem da forma como recebem o diagnóstico da doença. "Falta a muitos médicos um olhar para o ser humano que está na sua frente. Às vezes, basta pegar na mão e dizer: 'calma, eu sei que dá medo, mas você não está só.'"

A costureira Edilene, agora aposentada por invalidez por causa do câncer, diz que as palavras do médico tiveram um impacto negativo mas depois serviram para fortalecê-la na luta contra a doença. "Resolvi assumir as rédeas, buscar informações corretas e ajudar outras pessoas." Hoje ela coordena um grupo de apoio a pacientes com câncer em Campo Erê (SC).

ALZHEIMER

Para o geriatra Paulo Canineu, professor de gerontologia da PUC-SP, esses conflitos na comunicação entre médico e paciente ocorrem, em geral, por falta de educação do profissional de saúde. "É coisa que se aprende (ou não) lá atrás, com os pais."

Ele conta que o diagnóstico da doença de Alzheimer é um outro momento passível de atritos. "Hoje tem o mesmo peso que o câncer tinha anos atrás, quando não havia tratamentos curativos."

Segundo Canineu, se o paciente descobre cedo a doença e adere ao tratamento e a outras práticas (como atividades físicas, cognitivas e sociais), consegue se manter sob controle por mais tempo. "Mas para isso é preciso motivação do paciente e da família. Um diagnóstico na lata pode prejudicar essa adesão."

Mais do que isso. Uma fala inapropriada pode ser fatal. O médico Reinaldo Ayer lembra de um caso antigo de um infectologista que recebeu um paciente de 15 anos encaminhado por um colega.

Ele havia tido acesso ao histórico clínico do garoto, mas não sabia que a família desconhecia que o filho tinha HIV. O médico já começou a consulta mencionando o fato, na frente do adolescente, o que causou um desespero geral. No dia seguinte, o menino cometeu o suicídio.

"Palavras erradas ou ditas de forma inadequada podem resultar numa tragédia. Muitas vezes, não é o diagnóstico que tem importância, mas sim como essa relação de confiança entre o médico e o paciente está estabelecida."

Coordenador do centro de bioética do Cremesp (Conselho de Medicina Paulista), Ayer diz que problemas de comunicação podem resultar numa infração ética se ficar caracterizada imprudência ou negligência do médico. Ele pode ser processado e até perder o registro profissional.

O futuro do combate ao câncer


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