Folha de S. Paulo


Quem já teve dengue pode estar mais vulnerável ao vírus da zika, diz estudo

Kuhn and Rossmann research groups/Purdue University
Superfície do vírus da zika
Superfície do vírus da zika

As defesas produzidas pelo organismo das pessoas que já foram infectadas pelo vírus da dengue podem deixá-las mais vulneráveis ao zika, sugere um estudo internacional. Essa péssima notícia talvez ajude a explicar porque o vírus ligado à epidemia de microcefalia tem conseguido causar tantos estragos na população brasileira, que convive há décadas com a presença constante da dengue.

A pesquisa, que está na revista científica "Nature Immunology", usou como plataforma de testes algumas amostras de sangue obtidas de crianças tailandesas que pegaram dengue. Gavin Screaton e seus colegas do Imperial College de Londres tomaram como ponto de partida o fato de que, mesmo entre os diferentes subtipos da dengue (o vírus causador da doença se divide em quatro cepas principais), é comum que existam efeitos indesejáveis de uma primeira infecção.

Digamos que a pessoa seja infectada pelo tipo 1 do vírus da dengue (também conhecido como DENV-1). Conforme o patógeno se espalha pelo organismo, células especializadas começam a produzir anticorpos contra ele. Os anticorpos passam a se encaixar na superfície das partículas de vírus e ajudam a neutralizá-las (veja infográfico). Se aquela mesma pessoa for picada por um mosquito que carrega o DENV-1, as células produtoras de anticorpos rapidamente entrarão em ação, evitando que ela desenvolva a doença novamente.

ENCAIXE IMPERFEITO

A questão, porém, é que os subtipos da dengue possuem diferenças de até 35% na composição do chamado envelope viral (a "capa" do vírus, justamente a parte que entra em contato com os anticorpos). Isso significa que os anticorpos para o DENV-1 continuam grudando nas partículas de DENV-4, por exemplo –mas de um jeito meia-boca.

Resultado: em vez de eliminar a infecção, como seria o correto, a presença dos anticorpos acaba por potencializá-la - eles ajudam a levar as partículas virais para dentro de células nas quais o vírus se reproduz de forma acelerada. Isso provavelmente explica por que manifestações severas da doença, como a dengue hemorrágica, são mais comuns quando a pessoa é reinfectada por um novo subtipo do vírus.

Zika

A diferença entre a composição do envelope viral do zika e a dos subtipos da dengue não é substancialmente maior do que a existente entre as variantes de dengue (entre 41% e 46%), então fazia algum sentido imaginar que um fenômeno como o descrito acima também poderia acontecer.

Foi o que Screaton e seus colegas da Tailândia, da França e da Polinésia Francesa verificaram in vitro. De maneira geral, quase todos os anticorpos contra o vírus da dengue produzidos pelo organismo das crianças tailandesas se mostraram capazes de se ligar às partículas virais de zika - mas de um jeito incompleto. Isso parece facilitar a ação do zika.

Em um dos experimentos, os cientistas expuseram uma linhagem de células humanas que normalmente não é invadida por vírus desse grupo com facilidade ao plasma sanguíneo das crianças infectadas. Esse "tratamento" fez com que o número de células dessa linhagem infectadas pelo zika aumentasse 12 vezes.

Resultados parecidos foram vistos tanto com a forma africana do zika quanto com a variante da Polinésia Francesa (muito parecida com a que existe no Brasil - o "nosso" zika veio originalmente de lá).

"É um trabalho bem feito, mas ainda é cedo para a gente extrapolar e afirmar que essas coisas estão acontecendo in vivo [nos pacientes]", diz Maurício Lacerda Nogueira, virologista da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (SP). "Pode ser uma peça do quebra-cabeças, que ajudaria a explicar a gravidade do zika aqui, mas provavelmente não é a única que falta."

Para o pesquisador brasileiro, só estudos mais aprofundados com populações afetadas por ambos os vírus poderão confirmar a hipótese do grupo internacional.

LADO BOM?

O trabalho dos pesquisadores não trouxe apenas más notícias, porém. Acontece que alguns dos anticorpos contra dengue parecem, na verdade, ter a capacidade de neutralizar o zika de maneira eficaz. Em outro estudo, desta vez na revista "Nature" e coordenado por Félix Rey, do Instituto Pasteur, em Paris, a equipe mostrou em detalhes como se dá o encaixe molecular entre dois desses anticorpos e os vírus. Eles defendem que seria possível usar essas informações para formular uma vacina "universal", que valha tanto para os diversos tipos de dengue quanto para o zika.

Nogueira, mais uma vez, pede cautela. "A diferença entre anticorpos que conseguem reconhecer todos os vírus e os que realmente são capazes de neutralizá-los é grande", destaca.


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