Folha de S. Paulo


Audiência sobre a judicialização da 'pílula do câncer' tem vaia e bate-boca

Jorge Araujo/Folhapress
Audiência pública na OAB em São Paulo, que teve a participação de críticos e defensores da fosfoetanolamina
Audiência na OAB em São Paulo, com participação de críticos e defensores da fosfoetanolamina

Audiência pública convocada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em São Paulo para discutir a "pílula do câncer" é marcada por choro, indiretas e pouco consenso entre os participantes nesta quinta-feira (17).

Essa é a primeira vez que o órgão paulista convoca uma discussão pública sobre o uso da fosfoetanolamina sintética —substância que tem sido utilizada como tratamento por pacientes oncológicos graças a estudos do professor Gilberto Orivaldo Chierice, da USP.

O evento reuniu cerca de cem pessoas entre representantes dos conselhos de medicina e farmácia, políticos e advogados, além de pacientes e defensores da pílula e do próprio Chierice.

No último dia 8, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que autoriza o uso da "fosfo" em casos de câncer mesmo sem comprovação de que a substância funcione.

Remédio anticâncer

O texto foi encaminhado para votação no Senado. Se aprovado, segue para sanção presidencial.

"A motivação da OAB em discutir o assunto é que hoje a Justiça é a principal via de obtenção desse medicamento", explica o professor de Direito Celso Fiorillo, que esteve no debate.

Atualmente, a USP é obrigada a acatar mais 15 mil liminares de juízes de todo o país, que entendem que é dever da universidade fornecer a "fosfo".

A droga é produzida por Salvador Claro Neto, técnico do Instituto de Química de São Carlos, em um laboratório dentro da universidade.

As 9.600 cápsulas que Neto produz por mês dão conta de cerca de 200 pacientes, que recebem a substância de graça. Os demais são postos em uma fila de espera. Muitos acabam processando a universidade por conta da demora.

"É tudo muito aleatório, cada juiz requer uma quantidade diferente de pílulas. Alguns impõe multas para cada dia de atraso no fornecimento, os valores vão de cinco mil até cem mil reais", explica o procurador da USP
Aloysio Vilarino dos Santos.

Atualmente, a USP tem contas bloqueadas no valor de R$ 180 mil por conta de uma dessas ações e mais da metade da procuradoria da universidade está mobilizada para cuidar desse assunto.

CONTRA A FOSFO

Para Braulio Luna Filho, presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP), "fosfo" tem gerado uma "judicialização da medicina". "Juízes estão interferindo em um assunto que, do ponto de vista
científico, é muito simples", diz ele.

"Não foram feitos estudos sequer para avaliar a toxidade dessa substância. O que existe são pesquisas iniciais, com vinte ratinhos. Não tem cabimento receitar isso, e o médico que o fizer será punido pelo conselho", afirma.

Para Luna, o maior problema encontra-se na quantidade de recursos que o Estado tem disponibilizado para estudar uma substância que ele classifica como "pouco promissora".

No ano passado, o MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) anunciou que investiria R$ 10 milhões para testar a eficácia da fosfoetanolamina e o governo estadual de São Paulo traçou um plano para iniciar estudos controlados da molécula com cerca de 200 pacientes humanos.

Luna chegou a afirmar que a maioria das pessoas hoje tem "o entendimento de um camponês medieval". Saiu ao som de vaias discretas e sendo chamado de "Deus" após dizer que entendia que a discussão sobre o método de aprovação de um medicamento fosse "sofisticada demais" para os presentes.

Um pouco menos enfático, mas igualmente cético, estava o presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo, Pedro Eduardo Menegasso. Segundo ele, o laboratório onde a droga é sintetizada não segue preceitos básicos de higiene.

"É um laboratório didático, não tem condições de produzir medicamentos. Os recipientes sequer são devidamente higienizados na hora do preparo", diz ele, que autuou a universidade no ano passado. Menegasso chegou a chamar a produção de Neto e Chierice de "clandestina", mas se desculpou diante dos protestos da plateia.

A procuradora Maria Paula Dallari Bucci, da USP, apresentou uma fotografia do laboratório, dizendo que a universidade tinha vergonha de produzir medicamentos num local assim. "É mais sujo do que o banheiro da casa de vocês", complementou Santos.

DEFESA

Chierice afirma que a "fosfo" não é tóxica e que já foi testada em humanos na década de 1990, durante um convênio com o Hospital Amaral Carvalho, de Jaú (SP). O hospital não confirma a informação.

Ele também diz que a fotografia do laboratório não corresponde ao local onde a droga é sintetizada. "Esse é um outro laboratório do Instituto, um laboratório de polímeros que apenas parece sujo por conta das substâncias usadas lá", diz.

Procurada após a audiência, a USP mantém a posição de que o laboratório apresentado na foto e autuado pelo Conselho de Farmácia é o local onde a droga é sintetizada.

Entre os defensores da "fosfo" estavam pacientes e familiares –vários deles se emocionaram ao falar sobre o tratamento–, além da vereadora de São Carlos Cidinha do Oncológico, do PHS (Partido Humanista da Solidariedade), e do deputado estadual Roberto Massafera (PSDB).

O meio termo ficou por conta do presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Martim de Almeida Sampaio. Para ele, a discussão sobre a "fosfo" é complexa porque o doente tem direito de buscar tratamentos, inclusive aqueles que ainda não foram reconhecidos, mas o Estado não deve colaborar com a difusão de uma droga que não foi regulamentada.

"No limite, a pessoa tem direito até mesmo à auto-lesão", diz Sampaio.

-

Linha do tempo

Década de 1990
A substância é sintetizada pelo pesquisador Gilberto Chierice e começa a ser distribuída para pacientes

10.jun.2014
Após a aposentadoria de Chierice, o Instituto de Química de São Carlos da USP publica portaria que impede a produção e distribuição de qualquer droga sem registro (caso em que cai a "fosfo")

Out.2015
O Tribunal de Justiça de São Paulo barra liminares que pediam acesso a droga, mas volta atrás depois que o STF determina a entrega paciente com câncer no RJ

13.out.2015
USP diz não ter condições de produzir a substância em larga escala, mas que tentará cumprir os mandados judiciais

8.mar.2016
Câmara dos Deputados aprova projeto de lei que autoriza comercialização e uso da droga, o projeto seguiu para o Senado


Endereço da página:

Links no texto: