Folha de S. Paulo


Cães da USP 'escapam' de distrofia muscular e podem ser chave para a doença

Divulgação
Ringo, cachorro da USP da raça Golden Retriever, que 'escapou' da distrofia muscular
Ringo, cachorro da USP da raça Golden Retriever, que 'escapou' da distrofia muscular

O mistério de Ringo e Suflair parece ter chegado ao fim. Esses dois cães da raça golden retriever, pai e filho, nasceram com uma mutação em seu DNA que parecia destiná-los a desenvolver uma forma letal de degeneração dos músculos, mas quase não mostraram sintomas da doença.

Cientistas da USP descobriram o porquê disso, e o achado tem potencial para ajudar humanos com uma versão do mesmo problema.

Ambos os cães cresceram no Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco da USP, coordenado pela geneticista Mayana Zatz. A raça golden retriever foi escolhida porque os animais podem apresentar uma disfunção hereditária muito parecida com a distrofia muscular de Duchenne, que afeta 1 em cada 3.500 meninos.

"Meninos", e não crianças, porque se trata de uma disfunção ligada a alterações que ocorrem no DNA do cromossomo X. Meninas (e mulheres, obviamente) possuem dois cromossomos X, enquanto membros do sexo masculino têm um cromossomo X e um cromossomo Y.

O resultado disso, quando ocorrem as alterações genéticas que desencadeiam a doença, é que as meninas normalmente conseguem evitar os sintomas porque um de seus cromossomos possui DNA normal, "resgatando" o defeito no outro. Já os meninos, com apenas um X, não têm a mesma sorte.

Nos meninos afetados, a mutação leva à deficiência de distrofina, uma proteína essencial para as fibras dos músculos. O primeiro sintoma é a dificuldade para andar, por volta dos três anos de vida. Ainda na infância, é comum que os pacientes percam totalmente a capacidade de se locomover. O problema progride até afetar os músculos do coração, o que pode levar à morte na casa dos 20 ou 30 anos. Não há terapias eficazes para a doença.

As linhagens de Golden Retriever que sofrem do problema "imitam" de modo quase perfeito a doença humana. A equipe da USP usa os cachorros para testar possíveis intervenções contra a doença.

BEATLE DOS CÃES

É aí que entra Ringo. Hoje já morto, o cachorro com nome de Beatle viveu até os 11 anos, idade normal para sua espécie. Além disso, quase não tinha problemas de locomoção, apesar da mutação no gene da distrofina.

"Você só conseguia perceber algo um pouco diferente nele se já soubesse disso, era muito sutil", contou à Folha a bióloga Natássia Vieira, 33, primeira autora de um artigo descrevendo a genética peculiar de Ringo que acaba de ser publicado na revista científica "Cell", uma das mais importantes do mundo.

Quando Ringo gerou Suflair, hoje com nove anos, e o filhote também conseguia se virar apesar de seu DNA, a curiosidade da equipe cresceu.

O jeito foi "ler" todos as bilhões de letras químicas do DNA dos bichos, e foi o que os pesquisadores acabaram fazendo, com a ajuda de dois colegas dos EUA, Louis Kunkel, da Universidade Harvard, e Kerstin Lindblad-Toh, do Instituto Broad.

Tratava-se da proverbial agulha no palheiro: chamou a atenção dos cientistas a troca de uma única letrinha no DNA dos cães, num gene chamado Jagged1.

Essa alteração aparentemente boba parece ser capaz de turbinar o sistema que rege a multiplicação e a especialização das células musculares –compensando, ao que tudo indica, a falta de distrofina nos músculos de Ringo e Suflair. E, de fato, outros testes mostraram que as células musculares da dupla eram capazes de se dividir com mais rapidez que as de cães com sintomas de distrofia.

Identificar a variante genética que protegeu os músculos de Ringo e Suflair foi apenas o primeiro passo. Agora, é preciso entender os detalhes da ação da Jagged1 nas células musculares e pensar em estratégias de tratamento que possam tirar partido desse conhecimento.

Infográfico: Distrofia canina

TRATAMENTOS

Uma coisa, no entanto, a equipe já sabe: simplesmente injetar Jagged1 no organismo afetado não resolve.

"Dá para comparar com a insulina no organismo de um diabético", explica Natássia. "Quem tem diabetes pode produzir grandes quantidades de insulina, mas as células desenvolvem resistência a ela. Com a Jagged1 na forma solúvel [ou seja, que pode ser administrada via injeção] é a mesma coisa, ela se autorregula."

Para contornar isso, um caminho possível seria achar fármacos que aumentem a expressão –ou seja, os níveis de produção– da Jagged1 por parte do próprio organismo, o que poderia ter um efeito positivo.

"Para mim, trabalhar com esse tema foi uma lição de como a ciência realmente funciona", resume Natássia. "Nada cai do céu. A gente não vai conseguir publicar algo grande sem muita colaboração e uns dez anos de trabalho."

SAIBA MAIS

O problema da distrofia de Duchenne (DMD) e de outras doenças do tipo é uma degeneração acentuada e progressiva que impede o movimento normal dos músculos.

Não é só o músculo esquelético –como bíceps, glúteos e panturrilha– que sofre com a doença, mas também o músculo cardíaco e até mesmo o esôfago e o intestino.

Em boa parte das distrofias (inclusive na DMD) a "peça que falta" é uma proteína que mantém a célula muscular intacta enquanto ela contrai. Sem ela, há uma ruptura da membrana celular, ou seja basta o músculo funcionar para que os danos ocorram.

Após apresentarem os primeiros sinais na infância, não há melhora. Existem tratamentos fisioterapêuticos e com drogas anti-inflamatórias, que minimizam o sofrimento, mas que não curam a doença. A expectativa de vida dos pacientes é de poucas décadas.

Uma das alternativas de tratamento que ainda estão sendo estudadas é a terapia gênica. Faz sentido, pois o defeito está justamente no gene da distrofina, a "peça quebrada".

A dificuldade é entregar as "peças novas" –ou seja, o gene saudável– para todas as celulas musculares do corpo. Uma das alternativas é com o uso de alguns vírus, que aumentam a chance do novo material genético ser incorporado à biblioteca gênica de cada fibra muscular.

Mas mesmo com uma alta taxa de sucesso de entrega, é possível que haja problema na perpetuação desse novo pedaço de DNA no organismo.

Outra opção é a terapia com células-tronco. A célula muscular pode ser cultivada em laboratório já com o gene saudável, fabricadas a partir de células-tronco do paciente ou de células de um outro organismo.

A ideia seria que essas células ocupassem o espaço daquelas degeneradas e se elas se replicassem de forma a substituir todo o tecido muscular doente.

Já a pesquisa do grupo de Mayana Zatz mira no rol de possíveis soluções que a própria natureza oferece.

Um gene superativado (Jagged1) compensa os danos causados pela falta da distrofina e poderia inspirar novas abordagens contra a doença.

Curiosamente, mesmo em um organismo com distrofia existem músculos esqueléticos que parecem ser poupados dos danos causados pela doença.

Entre eles estão os músculos extraoculares, responsáveis pelo movimento dos olhos, e o masseter, responsável pela mastigação, mas ainda não se sabe por que essa diferença existe.

Colaborou GABRIEL ALVES


Endereço da página: