Folha de S. Paulo


Falta de saneamento leva à desnutrição na Índia

Seus olhos estavam pintados com delineador preto espesso para afastar o mau-olhado, mas, mesmo assim, o pequeno Vivek, de 1 ano, morador de um vilarejo de casebres de barro, tinha sido vitimado pelo grande flagelo da desnutrição que acomete a Índia.

Seus pais pareciam estar fazendo tudo certo. Sua mãe ainda o amamentava. Sua família tinha seis cabras, acesso a leite fresco de búfala e dezenas de quilos de trigo e batatas em casa. A mãe de Vivek disse que lhe dá de comer tanto quanto ele consegue ingerir e que o levou quatro vezes a médicos, que diagnosticaram desnutrição.

Então por que Vivek é desnutrido? A pergunta está sendo feita sobre crianças em toda a Índia, país cujo "boom" econômico não vem ajudando muito a reduzir o número de crianças desnutridas e atrofiadas. O retardo de crescimento as deixa com deficits mentais e físicos. Agora estudos científicos sugerem que Vivek e muitas das outras crianças de até 5 anos no mundo -162 milhões delas- que estão desnutridas sofrem não tanto pela falta de alimentos, mas de saneamento básico.

Como quase todos em seu povoado, Vivek e sua família não têm banheiro. O distrito em que vivem possui a maior concentração de pessoas que defecam ao ar livre. O resultado é que as crianças são expostas a um caldo bacteriano que muitas vezes as deixa doentes.

"Os corpos das crianças desviam energia e nutrientes do crescimento e do desenvolvimento cerebral para priorizar a sobrevivência e o combate à infecção", disse Jean Humphrey, da Escola Johns Hopkins Bloomberg de Saúde Pública, em Maryland. "Quando isso acontece nos dois primeiros anos de vida, a criança sofre retardo no crescimento. A perda de altura e inteligência são permanentes."

Dois anos atrás a Unicef, a Organização Mundial de Saúde e o Banco Mundial divulgaram um grande relatório sobre desnutrição infantil focado exclusivamente sobre a falta de alimentos. O saneamento não foi mencionado. Hoje, autoridades da Unicef e de grandes organizações beneficentes disseram em entrevistas acreditar que a falta de saneamento básico pode ser a causa de mais de metade do problema de retardo de crescimento em todo o mundo.

Uma criança criada na Índia tem muito mais chances de ser desnutrida que uma criança na República Democrática do Congo, em Zimbábue ou na Somália, os países mais pobres do planeta. O atrofiamento por retardo no crescimento afeta 65 milhões de crianças indianas de até 5 anos, incluindo um terço das crianças das famílias mais ricas do país.

Pelo menos 620 milhões de pessoas defecam ao ar livre. E, embora esse número tenha caído ligeiramente nos últimos dez anos, uma análise de dados do censo mostra que, devido ao crescimento demográfico acelerado, a maioria dos indianos está exposta a mais dejetos humanos do que jamais esteve no passado. Milhões de pessoas se banham no rio Ganges, mas quase 75 milhões de litros diários de dejetos humanos fluem diretamente para o rio.

O retardo de crescimento contribui para a morte de 1 milhão de crianças de até 5 anos todos os anos. E as crianças que sobrevivem sofrem deficits cognitivos e são mais doentias que as crianças não afetadas pelo retardo de crescimento. Também podem enfrentar risco maior de doenças de adultos como diabetes, ataques cardíacos e derrames cerebrais.

"O problema do retardo de crescimento na Índia representa a maior perda de potencial humano em qualquer país na história", disse Ramanan Laxminarayan, vice-presidente de pesquisas e políticas da Fundação de Saúde Pública da Índia.

A defecação ao ar livre é um problema milenar na Índia. Alguns textos hindus da antiguidade aconselham as pessoas a fazer suas necessidades longe de casa. "A causa de muitas de nossas doenças é a condição de nossos banheiros e nosso mau hábito de jogar excrementos em todo e qualquer lugar", escreveu Gandhi em 1925.

Outros países em desenvolvimento já conquistaram avanços enormes no saneamento. Apenas 1% dos chineses defeca e urina ao ar livre, contra metade dos indianos. As atitudes podem ser igualmente importantes. Uma pesquisa recente constatou que muitas pessoas na Índia preferem fazer suas necessidades ao ar livre. "Precisamos de uma revolução cultural neste país para mudar completamente a atitude das pessoas em relação ao saneamento e à higiene", disse Jairam Ramesh, economista e ex-ministro do Saneamento.

O governo indiano se esforça há décadas para resolver o problema de desnutrição no país, distribuindo volumes imensos de alimentos subsidiados. Hoje a Índia gasta US$ 26 bilhões (R$ 57,2 bi) anuais com programas de alimentação e empregos e menos de US$ 400 milhões (R$ 880 mi) na melhora do saneamento básico.

A falta de alimentos ainda é um fator importante que contribui para a desnutrição infantil. Para alguns, a adesão repentina ao argumento do saneamento é exagerada.

Estudos em vários países estão avaliando a parcela do retardo de crescimento que pode ser atribuída à falta de saneamento básico. "É 50%? 90%? Valeria a pena ter a resposta", disse Stephen Luby, professor de medicina na Universidade Stanford, na Califórnia. "Enquanto isso, acho que todos podemos concordar que não é boa ideia criar crianças cercadas de fezes."


Endereço da página: