Folha de S. Paulo


Médicos discutem relação entre traumas cerebrais e lesões sofridas em competições

Chegou à Europa a discussão sobre como reagir às pesquisas crescentes que vinculam traumas cerebrais a lesões sofridas na prática de esportes.

Peritos médicos pedem mudanças. Alguns atletas e ligas esportivas resistem, pela tradição e para agradar aos espectadores. É um roteiro semelhante ao que vem sendo visto especialmente no futebol americano.

O diálogo sobre o assunto no rúgbi e no futebol é colorido pelas reverberações dos processos judiciais americanos, como um em que a Liga Nacional de Futebol Americano (NFL) pode ser obrigada a pagar indenização de US$ 765 milhões (R$ 1,69 bilhão).

"Precisamos de uma mudança fundamental de postura", disse Simon Kemp, chefe médico da União Inglesa de Rúgbi.

As mudanças são dificultadas pelo fato de o rúgbi estar passando por um boom sem precedentes. Depois de passar anos à sombra do futebol, o esporte consegue lotar estádios com até 80 mil pessoas, grande público televisivo e lucros que produziram a primeira geração de jogadores milionários.

A resistência também é forte no futebol, esporte em que as colisões violentas ocorrem com menor frequência. Mesmo assim, três jogadores da liga inglesa desmaiaram por causa de colisões nos primeiros quatro meses da temporada.

O ex-ministro do Governo britânico Chris Bryant pediu que as ligas tomem medidas para prevenir o risco de mais lesões cranianas, algo que poderia colocar o esporte em risco financeiro, como aconteceu com a NFL.

"Em vista do que aconteceu nos EUA, esse problema tem o potencial de causar forte impacto aqui", comentou Bryant, que é jogador amador de rúgbi.

Em um fórum sobre traumatismos cranianos sofridos em práticas esportivas convocado por Bryant na Câmara dos Comuns em março, autoridades do rúgbi, boxe e futebol admitiram a necessidade de mudanças.

Mas também disseram que a extensão do problema e das reformas regulatórias necessárias deve ser ditada por mais pesquisas sobre lesões cerebrais nos esportes, não pela ação movida contra a NFL ou por estudos americanos.

Para Kemp, os casos de encefalopatia traumática crônica, tipo de lesão cerebral de longo prazo comum entre ex-jogadores da NFL, são raros no rúgbi, tendo provocado apenas uma morte.

Em vez de se apressar a aceitar os dados do futebol americano, ele diz ser a favor de pesquisas independentes, "para que saibamos o que deve ser feito para proteger os jogadores e possamos apresentá-las corretamente".

Chris Nowinski, ex-jogador de futebol americano em Harvard, lutador profissional e autor do livro "Head Games: Football's Concussion Crisis", disse que a posição britânica o deixa exasperado.

Sua publicação fundamentou um documentário de 2012 que chamou atenção para o problema nos Estados Unidos. "Me espanta ver que nossos avanços não chegaram ao outro lado do Atlântico."

Bryant disse que sua campanha visa "administrar os riscos" de traumatismos cranianos, por meio de reformas voluntárias.

No futebol americano, um jogador que sofreu uma colisão ou batida que o fez desmaiar não pode voltar a jogar na mesma partida.

No rúgbi, os médicos têm cinco minutos para determinar se um golpe foi leve para permitir que o jogador retorne ao jogo.

Mas alguns fatos recentes provocaram preocupação. Um deles foi a morte de Ben Robinson, 14, na Irlanda do Norte, em 2011. O garoto sofreu golpes na cabeça três vezes numa mesma partida, mas voltou a jogar após ser examinado pelo treinador. Ele desmaiou em campo e morreu dois dias depois.

Em novembro, o goleiro do Tottenham Hugo Lloris voltou a jogar depois de ter sofrido uma batida que o deixou desmaiado. Foi a terceira ocorrência do tipo no Campeonato Inglês deste ano.
Lloris continuou a jogar por quase 15 minutos, até o encerramento da partida. O então treinador do Tottenham, André Villas-Bôas, disse que tinha seguido o conselho do médico do time, mas uma semana depois o jogador não passou nos exames médicos e deixou de ser escalado.

Após audiência na Câmara dos Comuns, o pai de Ben Robinson, Peter, declarou: "Meu filho foi 'avaliado' três vezes. Mas perguntar a um garoto 'você está bem?' é absurdo, porque é claro que ele quer voltar. É como perguntar a um bêbado se ele pode dirigir".


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