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'Brinco até em público', diz mãe que aprendeu a demonstrar seu amor

Ricardo Borges/Folhapress
Poliana Souza Silva, 31, e os filhos Gabriel Miguel (à esq.), Kimberly, Kemilly (no colo) e Willian (à dir.)
Poliana Souza Silva, 31, e os filhos Gabriel Miguel (à esq.), Kimberly, Kemilly (no colo) e Willian (à dir.)

"Agora falo 'eu te amo' na cara dura, para meus filhos, a toda hora", conta a dona de casa Poliana Souza Silva, 31. Mas nem sempre ela conseguiu demonstrar seus sentimentos para o filho e para o marido.

Criada no Rio de Janeiro, ela ficou dez anos no orfanato onde a tia a deixou assim que chegaram à cidade, quando ela tinha 1 ano de idade. "Elas não tinham aquele carinho de mãe com filho", lembra sobre as cuidadoras do orfanato.

Ainda assim, o carinho recebido das mães emprestadas era maior que o da própria tia. "Ela não se preocupava em comprar material escolar. Eu dependia das minhas colegas na escola para me dar folha de caderno para terminar os deveres."

Por causa do pouco afeto na infância, ela não conseguia demonstrar o que sentia para seu marido e seus filhos. "Algo me prendia."

Há dois anos, no entanto, ela começou a mudar após participar da oficina Família Cuidadora, realizada pela Visão Mundial. Nela, famílias que moram em comunidades aprendem não só a dar carinho como aprendem, em capacitações, a não perpetuar os maus tratos sofridos na infância.

Leia abaixo o depoimento de Poliana à Folha.

*

Nasci em Itabuna, na Bahia, mas fui criada no Rio. Minha mãe me teve com 15 anos. Ela teve um problema durante parto e não pôde me criar. Minha tia me trouxe para o Rio quando eu tinha 1 ano, só que ela também não conseguia cuidar de mim e me colocou no orfanato.

Morei nesse lugar até meus 11 anos. A vida, ao meu ver, era boa. Tinha amigos, mas gostava mais de ficar perto de adulto, nunca fui de ficar com as crianças.

Eram 12 casas e cada uma tinha uma cuidadora, que eles chamavam de "mãe social". Elas cuidavam direitinho da gente, mas não tinham aquele carinho de mãe com filho, de abraçar, beijar.

Minha tia me tirou de lá e voltei a morar com ela. Não tinha afeto, carinho. Enquanto ela estava casada com o pai das minhas primas, tudo era igual. Se comprasse uma roupa, comprava para mim, mas acho que era por parte do meu tio.

Depois que ela se separou, as coisas mudaram mudou tudo. Eu fazia tudo sozinha. Se não, apanhava. Tinha que levar o mais novo para escola, acordava cedo.

Ela não se preocupava em comprar material escolar. Eu dependia das minhas colegas de sala de aula para me dar folha de caderno para terminar os deveres. Fiz só o ensino fundamental. Se tivesse tido ajuda da minha tia, acho que teria terminado meus estudos.

Por causa disso, preferi sair de casa e fui morar com a mãe de uma colega, onde fiquei até me casar, com 18 anos. Estou com ele até hoje e tenho quatro filhos.

MUDANÇA

Converso muito com meus filhos. Quando eles vão para a escola, explico sobre pessoas estranhas na rua, para não dar confiança, mando beijo, faço eles pedirem bênção também. Eu não fazia isso antes da oficina, aprendi com eles.

Como eu fui criada assim, tinha muita vergonha de demonstrar meus sentimentos para os meus filhos. Esperava eles dormirem para beijar, acariciar, por vergonha. Algo me prendia. Nem brincava de fazer coceguinha.

Depois da oficina, me solto mais. Hoje já brinco, converso, beijo até na rua, em público. O meu filho de 11 anos é que não gosta muito, mas eu, onde estiver, se achar que eu tenho que zoar ele um pouquinho, apertando a bochecha, eu aperto.

Às vezes, até meu marido falava para eu me soltar, me expressar. Nem "eu te amo" eu dizia. Ao invés de falar, eu só chorava. Agora falo "eu te amo" na cara dura, para meus filhos, a toda hora. Ensino a eles também que tem que expressar os sentimentos.

O meu filho de 8 anos é mais de chegar em mim. Se estou lavando louça, ele me abraça do nada, me beija, é mais afetivo. O maior, de 11 anos, não é de demonstrar muito. Não sei se é porque eu demorei muito a participar da oficina, e ele já estava maior para eu demonstrar meu amor.

Mas ele gosta mais de escrever. Ele escreve para mim: "Mãe, eu te amo! Obrigado por tudo!" Ele era muito mais fechado, se acontecesse alguma coisa, não falava. Agora já conta o que acontece na rua, me abraça, mas percebo que é aquele abraço ainda meio com vergonha.

Não falo nada porque eu era assim também. Os menores são mais espontâneos. Aos poucos o maiorzinho chega lá.


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