Folha de S. Paulo


Fizemos algo bom do erro médico e da lesão cerebral da nossa filha, diz mãe

Aline Pereira, 37, descobriu alguns meses após o nascimento de Clara, 9, sua primeira e única filha, um erro médico que condicionou toda a sua vida desde então.

A demora no parto, que ocasionou falta de oxigenação no cérebro do bebê, resultou numa paralisia cerebral que comprometeu os movimentos e a fala da menina.

Um episódio doloroso que ela e o marido, Carlos Pereira, 38, transformaram em algo positivo. Foi a partir das dificuldades da filha, que o analista de sistemas brasileiro criou o Livox, software de comunicação alternativa para pessoas com deficiência. A ferramenta foi considerada a melhor tecnologia inclusiva do mundo pela ONU.

Uma história de superação e inovação que fez Pereira vencedor do Prêmio Empreendedor Social 2016.

O Prêmio Empreendedor Social está com inscrições abertas; participe

A família vive hoje em Orlando, na Flórida (EUA), onde o pai desenvolve novas ferramentas para o Livox, que é usado pela filha em casa e na escola, onde Clara é alfabetizada também em inglês, contando sempre com a ajuda e incentivo dos pais.

Leia abaixo o depoimento de Aline sobre como transformou a dor em força e em uma história de empreendedorismo.

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Minha gravidez foi bem tranquila, planejada. Carlos e eu já tínhamos sete anos de casados quando decidimos ter Clara.

Fui para o hospital para ter um parto normal, mas demorou bastante. Cheguei a ter nove centímetros de dilatação, mas a médica decidiu fazer uma cesariana, o que demorou ainda mais.

Nesse tempo, faltou oxigênio para o bebê. Minha filha teve uma lesão cerebral, que comprometeu os movimentos dela.

Clara tem todos os movimentos, mas não consegue coordená-los, uma sequela da falta de oxigenação durante o parto.

Chorei muito quando veio o diagnóstico. Pesquisei, fui sabendo mais e sofri novamente ao descobrir que minha filha não ia andar, falar.

Foi muito difícil, a gente não tinha experiência. O que eu fiz foi transformar a tristeza que senti em força para procurar meios para que Clara se desenvolvesse da melhor forma possível.

Eu olhava pra ela, linda, e sabia que minha filha merecia ter uma oportunidade. Então, Carlos e eu passamos a trabalhar em cima do que ela podia fazer. Dar sempre oportunidades a ela e não subestimá-la, contando sempre que Clara vai conseguir.

Nesse contexto surgiu o Livox. Foi quando a gente viu a necessidade dela de comunicação. Clara ficava muito frustrada por não poder se comunicar. Ela tem o potencial cognitivo muito bom, mas o corpo não obedece.

Foi quando Carlos teve a ideia de fazer um software para que ela pudesse se comunicar por meio do tablet. A gente foi trabalhando junto para fazer isso acontecer.

As primeiras vezes que nos comunicamos com ela via Livox foram de muita emoção. Teve uma história impressionante. Perguntei a Clara se ela ficava triste, se tinha consciência de que não podia brincar no chão ou andar. Ela disse, usando o dispositivo, que não ficava triste, mas que gostaria.

Respostas que fui tirando dela, com um sim e não, bem no começo do desenvolvimento do Livox.

Foi maravilhoso ver o nível de consciência que ela tem, vendo minha filha responder uma pergunta complexa. Saber que ela era feliz, que ela gostaria de andar.

Ela escolhe o que vai comer por meio de figurinhas na tela do tablet. Mas começamos também a ver as necessidades não só de alimentação. Conseguimos tirar o que ela sente e pensa.

O Livox foi dando mais opções para ela, passando conhecimentos, e Clara foi respondendo.

Até começou a teimar, o que é importante pra uma criança.

Ela começou a dizer "não" ou "não vou fazer agora". Isso nos deu oportunidade de educar, que é o nosso papel. Ela pedia a sobremesa antes do jantar. Eu dizia não. Que outro meio ela teria para comunicar suas vontades? Nenhum.

O Livox trouxe poder, liberdade. Clara pode ser livre. Com a comunicação alternativa ela pode chegar aonde ela quiser. Não tem limites. Vai crescer, ter mais necessidades, e a tecnologia vai se desenvolver mais ainda. Com o que já está sendo trabalhado hoje, ela vai ter muitas possibilidades no futuro.

Clara é muito inteligente, já faz muita coisa, escolhe suas próprias roupas. Tem certa autonomia, não motora, mas intelectual. Vejo que é muito boa em matemática, em relacionamento, em artes. É emocionante ver as reações dela quando consegue se comunicar. Eu vejo também as limitações e as frustrações, mas é impressionante como ela tem se adaptado bem ao fato de a gente hoje viver em outro país.

Aqui nos Estados Unidos, ela consegue ver o acolhimento. As pessoas acreditam nela.

Na escola americana, você não precisa falar de inclusão. Eles fizeram com ela um teste padrão aplicado para todas as crianças para saber qual era o nível dela de linguagem, inglês, matemática.

Testaram para ver até onde Clara conseguiria ir. Inclusive se era superdotada. Olha a diferença: uma criança com deficiência pode ser superdotada. Por que não? Clara só não tem habilidade motora.

No Brasil, também precisamos achar que a criança com deficiência pode ser muito mais. E então trabalhar nessa direção. A criança percebe quando é acolhida, ouvida. Quando se acredita nela. É o que acontece com Clara aqui. E eu gostaria que no Brasil também. Que todas as crianças tivesse oportunidade para se desenvolver.

É o que eu digo para todas as mães e pais: acreditem nos seus filhos, não percam a esperança, trabalhe com eles hoje. O futuro vai vir, e a gente vai colher lá na frente. E que se mantenham firmes, focados. É seu filho ou sua filha que está ali e merece oportunidade igual a todos as outros.

O Livox já tem ajudado muita gente com deficiências. A tecnologia pode dar voz e oportunidade a essas pessoas.

O fato de eu saber muito sobre a deficiência da minha filha, ajudou no desenvolvimento do Livox. Vivenciei isso tudo a partir de erro médico. Olho para trás e vejo o quanto foi motivador pra gente. Foi difícil, mas me sinto honrada de ver que a nossa experiência tem ajuda tantas outras pessoas.

Com o nascimento de Clara e o nascimento do Livox nossa vida virou 180 graus. Mudou completamente. Nosso futuro não é nada do que a gente tinha planejado. A gente aceitou essa reviravolta. Tem que ser assim. Foi ótimo ter transformado esse erro em boas ações.


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