Folha de S. Paulo


'Para mim, a morte é melhor', diz refugiada que sofreu estupro no Congo

Nascida na República Democrática do Congo, Francine Kola Fiona, 37, diz que "a democracia não existe lá". Estuprada duas vezes, deixou tudo para trás por causa da violência, principalmente contra a mulher.

"Bati na porta do Brasil, eles abriram, e eu entrei", diz a refugiada que está há quase dois anos em terras canarinhas.

Francine compartilhou sua história durante a Conferência Ethos 360°, em setembro de 2016, como parte de um trabalho do Instituto Lojas Renner que incentiva a contratação de refugiados.

Com seu emprego, ela quer juntar dinheiro para trazer suas filhas, que moram com o seu pai na capital Kinshasa. "Tenho medo por elas porque, como se diz, tal mãe, tal filha. Fui estuprada e não sei o que vai acontecer com minhas filhas, porque são mulheres."

Leia o seu depoimento à Folha:

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Estudei no Congo, terminei a faculdade de administração. Trabalhei em diferentes empresas. Deixei tudo por causa da violência.

Decidi largar tudo porque, uma vez, o governo publicou algo na TV, saímos na rua em manifestação, e começaram a atirar nas pessoas. O país se diz democrático, mas a democracia não existe lá. Eu disse não, preciso sair daqui. Prefiro morrer fora do meu país a viver lá e ver tudo isso que acontece.

O país não está em paz. Os rebeldes fazem o que querem, e o governo não diz nada porque está junto deles.

A violência é principalmente contra a mulher. O rebelde pode entrar na sua casa. Eles não veem os homens, veem as mulheres. Somos realmente vítimas de abuso, estupradas, e isso incomoda.

Fui estuprada duas vezes, quando tinha dez anos e quando fiz 17 anos. Prefiro morrer, porque essa dor volta todos os dias e isso atrapalha a vida. Para mim, a morte é melhor porque quando você morre, a sua história acaba. Mas não, eu vivo uma coisa que não posso nunca esquecer. Nem quando eu durmo.

Por isso decidi dizer não. Não posso ficar porque corro o risco de morrer. Tenho uma família que depende de mim.

Morava em Kinshasa, a capital. Minhas duas filhas estão na casa do meu pai. Uma tem 16 anos, e a outra, 8. Sinto muita falta delas. Para o coração de uma mãe, é realmente difícil estar aqui e minhas filhas lá. Não sei o que acontece com elas.

Tenho medo por elas porque, como se diz, tal mãe, tal filha. Fui estuprada e não sei o que vai acontecer com minhas filhas porque são mulheres. Depois de uma semana que eu estava aqui, elas me ligaram dizendo que não saíam de casa por causa das manifestações.

PORTA CANARINHA

Bati na porta do Brasil, eles abriram, e eu entrei. Faz um ano e meio. Quando eu cheguei aqui, dormia na rua porque não conhecia a língua, ninguém.

Não foi fácil. Tinha medo por causa de tudo que passei em meu país. O problema é vir de uma cultura e se integrar a outra.

Encontrei um trabalho porque onde eu estava ficando escutei sobre a Missão Paz [no centro de São Paulo, atende refugiados]. Falei com eles, entreguei meu currículo, e eles me ajudaram a bater a porta da Renner.

Fiz uma entrevista e fui aceita. Tive um problema com a documentação, que não foi fácil. O Brasil é um grande país e tem muitas empresas que não sabem que existem estrangeiros que querem trabalhar.

Não os culpo, mas eles nunca viram isso, nunca ouviram falar de documento protocolar provisório. Quando viram meu documento, ficaram um pouco frustrados, falaram que conheciam RG, RNE, mas isso não. Passei o dia todo lá para provar que era original.

RECEPTIVIDADE

Sou auxiliar de vendas. Comecei no início de setembro. Amo o trabalho porque todos meus colegas e meus chefes são muito bons comigo. Eles perguntam se está tudo bem, me dão coragem para continuar. Sabem que não entendo direito o português, mas estão lá para me dar força.

A diferença entre o Congo e o Brasil é o povo. O brasileiro adora ajudar, não tem categorias de pessoas. Quando eu cheguei à Renner, eu não conhecia ninguém, mas os gerentes me acolheram. Eles não precisavam fazer isso. O povo é gentil e se aproxima rápido.

RETRIBUIÇÃO

Eu esqueci tudo que estudei. Preciso aprender de novo. Estou pronta para aprender de novo. Lá [na Renner], se me dizem que é para varrer, eu faço, porque quero recomeçar uma outra vida.

Quero contribuir para que a Renner avance, quero deixar minha marca. Se eu sair, quero que saibam que passei por ali. É difícil dizer como me sinto tendo um trabalho depois de tudo que passei.

A crise humanitária é do ser humano. Somos obrigados a nos acostumar, não podemos fugir. Se eu saio daqui para voltar ao meu país, será pior. Então, tenho que me acostumar com o pouco que tenho.

Tinha uma boa vida no Congo porque eu trabalhava, tinha dinheiro. Na vida em família, seu pai está lá, seu dinheiro está lá e se juntam as forças para avançar. Aqui, estou sozinha. Se eu não procurar, ninguém vai ajudar.

Quero que meu pai e minhas filhas venham para cá. Por isso bati na porta da Renner para ter dinheiro para ter como trazer minha família. Ficar sozinha é muito difícil.


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