Folha de S. Paulo


'Amo o lixão', afirma catadora após trocar o lugar pela casa própria

Aos oito anos, quando ainda aprendia a ler e a escrever, Aparecida Margarete de Souza, 50, pisou pela primeira vez no lixão do Alvarenga, ativo por 30 anos na divisa entre os municípios paulistas de São Bernardo do Campo e Diadema.

A princípio, a "brincadeira" pelas montanhas de lixo e as corridas atrás dos caminhões eram para procurar retalhos de pano para levar para a mãe costureira.

No entanto, um derrame que deixou seu pai incapacitado para o trabalho de açougueiro fez das idas de Aparecida ao lixão o sustento da família oriunda de Vera Cruz (421 km de São Paulo).

Foram quase três décadas retirando dos 300 m² de lixão não só renda, mas também as roupas que vestia, os próprios brinquedos e depois aqueles que dava de presente aos sete filhos.

Sem falar no alimento garimpado em meio ao descarte de material orgânico, lixo hospitalar e até corpos humanos, que volta e meia eram encontrados no lixão.

O fechamento do Alvarenga em 2001 acabou com o trabalho de adultos como Aparecida e também retirou do lixão pelo menos 172 crianças.

Ela foi parar em um alojamento, em São Bernardo do Campo, e levou 11 anos lutando por uma casa própria.

Hoje, ao exibir os documentos de proprietária do imóvel e o boleto de R$ 50 da prestação, Aparecida admite: "Eu amava o lixão. Se eu pudesse, nunca tinha saído de lá, onde está a minha vida e a toda a minha história".

Leia a seguir o depoimento de Aparecida à Folha.

*

Nasci no interior de São Paulo e vim morar em Diadema pequenininha. Aos oito anos, comecei a ir para o lixão do Alvarenga.

Minha mãe fazia colchas para vender. No lixão, tinha muito retalho e eu pegava e levava para ela usar. Ia depois da escola.

Meu pai teve um derrame e perdeu a memória. Minha mãe tinha que cuidar dele. Então, quem ia trabalhar?

Com uns 12 anos, eu já levava dinheiro para casa com as vendas dos materiais que pegava no lixão. Com isso, comprava um quilo de arroz e meio quilo de gordura para passar a semana.

Saí da escola na quinta série e fiquei direto no lixão. Não podia estudar e largar minha mãe. Como eles comeriam?

Quando meu pai começou a melhorar, ela o deixava com os vizinhos e ia para o lixão me ajudar. Eu já tinha um barraco lá dentro, onde guardava meus alumínios e as minhas coisas.

Minha mãe se separou do meu pai e foi morar comigo e minha irmã em um barraquinho quase na porta do lixão.

Como toda criança, a gente buscava diversão. A minha era subir no alto da rabeira dos caminhões de lixo e falar: 'Pilota, motorista, porque eu quero chegar no lixão'. Era a brincadeira de todas as meninas e meninos.

Eu era doida para ter aquelas boneconas. Um dia pensei que tivesse achado uma. Quando a puxei pela cabeça de dentro do saco de lixo, falei: 'Achei, achei'. Era noite. Quando vimos, era uma criança morta.

Anos depois, minha mãe morreu e minha irmã foi embora. Conheci meu primeiro marido, que era maquinista no lixão, e engravidei da minha filha, que nasceu lá. Tínhamos um barraco praticamente do outro lado da rua do lixão.

Tenho sete filhos e não criei nenhum dentro do lixão. Eu e meu marido íamos trabalhar e eles ficavam dentro do barraco com a minha sogra. Nunca chegaram a trabalhar ou a entrar no lixão. Iam para a escola.

Com o que conseguíamos catar e vender diariamente, dava para viver bem, as coisas eram baratas. Do lixão, a gente tirava tudo, roupa, comida, brinquedos. Por dia, rendia uns R$ 40 ou R$ 50.

Quando chovia, colocávamos bota e capa de chuva. Era bom trabalhar em tempo de chuva, porque quase ninguém ia. Pegávamos mais coisas.

Tinha gente que ficava 24h dentro do lixão, porque os caminhões de São Bernardo do Campo e de Diadema despejavam dia e noite. Quando chegava um, ficávamos todos ao redor, conforme abriam e despejavam, catávamos o material rapidinho. Quem catou, catou.

Nunca achei ruim trabalhar no lixão, só quando perdíamos colegas em acidentes com caminhão. Ali era luta de sobrevivente. Quem pudesse mais, vivia. Quem não pudesse...

Naquela tempo, não usava nenhuma proteção, era acostumada. Todos ali eram dispostos a tudo. Nunca me machuquei. Só uma vez desmaiei, mas acho que foi a química. Tinha muito gás.

DESOCUPAÇÃO

Veio uma ordem para fechar o lixão. Foi uma briga, vinha polícia. Era uma guerra. Até que conseguiram fechar. Disseram que nos dariam moradia e escola para as crianças.

Não sei porque fecharam o lixão. Eu era tão feliz lá e não sabia. Se eu pudesse, nunca tinha saído do lixão, minha vida e história estão todas lá.

Eu vivi no lixo desde os meus oito anos e foi onde trabalhei por quase 30. Se eu pudesse me aposentar por essa função, já estaria aposentada há muitos anos.

À época da desocupação, a prefeitura falava que ia dar uma casa para nós. Não lembro qual era o partido que governava. Nesse tempo, eu não votava.

Tiraram a gente de lá, ajudamos a cadastrar as pessoas para receber cesta básica, produtos de limpeza e tirar documentos.

Toda favela tem aquele que quer ser o dono. Começaram a nos ameaçar, dizendo que autorizamos a fechar o lixão. Para não corrermos risco, a prefeitura nos retirou de lá.

CASA PRÓPRIA

O processo para conseguir minha casa foi longo. Saímos do lixão e fomos –umas 50 famílias do lixão e da [favela] da Naval– para um alojamento no [distrito de São Bernardo do Campo] Rudge Ramos, onde ficamos por quase 11 anos esperando a moradia. Quando chovia, alagava tudo, a água vinha na cintura.

O serviço saiu rápido, nos levaram para trabalhar em associações de catadores, que mais tarde viraram cooperativas. Também nos cadastraram no Bolsa Família.

Mas nada da moradia, nos enrolaram muito, tudo atrasava quando mudava de prefeito. Pegou fogo duas vezes no alojamento.

Um dia cansamos de esperar. Fizemos uma comissão e fomos para a porta da Secretaria de Habitação. O que fizeram foi jogar a gente para o aluguel. Recebia R$ 315 e colocava mais R$ 200 para inteirar. Assim, ficamos cinco anos.

Depois, foram uns cinco meses só fazendo reunião. Até que um dia falaram que íamos fazer uma visita para escolher nosso apartamento.

Quando entramos no prédio, montamos um bloco só com pessoas que vieram do alojamento, ficamos muito unidos. Para chegarmos até aqui, lutamos muito. Foi muito trabalho.

Há quatro anos estou no prédio. Mas eu não estou bem aqui, preferia meu lixão, porque lá tínhamos trabalho, tudo pertinho, não pagava condução.

Aqui, as prestações não estão caras, R$ 50 mensais durante dez anos, mas não temos a vida da gente. Não posso escutar rádio, fazer aniversário do neto. Tenho horário para tudo, vivo embaixo de regra. Fiquei feliz, em parte, porque não estamos mais cada dia em um lugar.

Eu amava o lixão, se eu pudesse voltar, estaria lá até hoje. Ninguém mandava em nós, íamos trabalhar o dia que queríamos, estávamos bem lá dentro.

SEGUNDO LIXÃO

Saí do lixão há 17 anos e há 16 trabalho com reciclagem em uma cooperativa. O jeito de trabalhar é diferente, mas é com lixo também.

Na reciclagem, acho muita coisa funcionando e inteira, como televisão, roupa, chinelo. Não tenho vergonha [de pegar e usar], não estou roubando ninguém.

A reciclagem é o meu segundo lixão. Nunca trabalhei em outro lugar.

As pessoas ainda não têm consciência de reciclar seu lixo. Acho que eles pensam que ainda estão mandando para o lixão, colocam junto com material orgânico, até gato e cachorro [mortos], lixo de banheiro e de hospital.

Reciclamos tudo, caixinha de leite, plástico, papelão, alumínio, papel. Vendemos e no final do mês dividimos igual de acordo com as horas trabalhadas.

Recebo uns R$ 800 por mês. Meu marido e duas filhas trabalham em outras cooperativas.

Hoje, o antigo lixão é uma mata. Ali tem muito gás, tudo contaminado, não se pode fazer nada.

Foi muito bom conseguir a minha casa. Aqui, sei que não vão colocar fogo, é de concreto.

Realizei o meu sonho de ver meus filhos estudarem –todos fizeram até o terceiro ano, é muita satisfação. Uma está fazendo faculdade para ser professora.

Para o futuro, não sei, só quero continuar a trabalhar e manter minha casa, que é grande.

Aqui moram sete pessoas. Agora, só podia ter uma lei para aposentar catadora.

APARECIDA MARGARETE DE SOUZA participou, em 2014, da série de depoimentos "Minha Casa Minha Cara Minha Vida", realizada pelo Museu da Pessoa. Membro da Rede Folha de Empreendedores Sociais, a organização coleciona histórias de vida de pessoas comuns e prega que escutar o outro é um instrumento para a democratização da memória social


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