Folha de S. Paulo


'Ensaiamos na rua sob sol e chuva', diz faxineira que lidera banda de lata

Na Lata
A arte-educadora Lethicia Lima com sua filha Kimmy, em Gentio do Ouro (BA). Lethicia lidera a banda de lata formada após a passagem do IBS pela cidade
A arte-educadora Lethicia Lima com sua filha Kimmy, em Gentio do Ouro (BA). Lethicia lidera a banda de lata formada após a passagem do IBS pela cidade

Latas de tinta, tambores de água e cabos de vassoura. O que à primeira vista pode parecer lixo, para a banda de lata Batucarte de Gentio do Ouro (BA) isso se transforma em instrumento.

Liderada pela faxineira da escola pública do município e arte-educadora Lethicia Lima, que participou da oficina de música do IBS (Instituto Brasil Solidário), a banda segue de maneira independente. Ela precisa conciliar o serviço de limpeza com os ensaios.

"[A oficina] era destinada a professores e alunos, não a funcionários", conta.

O IBS, uma Oscip (organização da sociedade civil de interesse público) que atua em escolas de municípios com baixo IDH para mobilizar a comunidade em prol do desenvolvimento local, passou pelo interior baiano, onde realizou atividades que misturam educação, saúde e artes.

Eles venceram a categoria Escolha do Leitor do Prêmio Empreendedor Social.

Hoje, as duas dificuldades para Lethicia manter a banda são a falta de apoio e de espaço. "Três horas da tarde tem sol forte, eles já ensaiaram na chuva também", relata.

O que mantém o batuques ecoando por Gentio do Ouro é a força de vontade. "Todo dia vai ter sol, então a gente vai ter que estar debaixo do sol mesmo, ensaiando."

Leia a seguir o depoimento de Lethicia para a Folha.

*

Eu trabalho no colégio. O IBS ia vir para a escola e eu entrei na oficina de música. [A oficina] era destinada a professores e alunos, não a funcionários. Tanto que, na época, estavam dividindo os espaços, o que eu ia limpar.

Um dia antes eu fui lá, realizei meu trabalho, limpei tudo certinho, deixei tudo bem limpinho porque ia chegar o projeto na escola. No primeiro dia que eu participei era só para olhar. Eu achei interessante porque eu já canto e, por isso, continuei.

Daí a gente montou a banda de lata. Eles pediram para eu escolher o nome e ficou "Batucarte" porque é batuque e arte ao mesmo tempo. A gente tem até um slogan que vai colocar numa camisa agora: "Antes arte do que nunca."

A gente aprendeu dois ritmos no início, axé e reggae. Agora, toca axé, reggae, funk... Os meninos tocam de tudo nessas latas.

Foi interessante para o colégio porque não tinha esse tipo de coisa. A escola muda porque as pessoas ficam entusiasmadas para fazerem as coisas que não faziam antes.

O IBS vindo para sua cidade, onde tem poucos habitantes e que o jovem não tem onde mostrar o que sabe, para mim, é bem grandioso. Aqui, só tem a escola, não tem nada que faça o adolescente interagir no meio cultural. São nove oficinas e muito aprendizado, muita coisa boa.

A cabeça do jovem acabou mudando. Antes, você não tinha crianças tão interessadas em fazer um som, em nada disso. Hoje, você tem crianças na minha porta o tempo todo. "Eu tenho uma lata, eu posso entrar? Eu posso entrar?" Lógico que pode.

No início, eram 13 ou 14 meninos que participavam. Como o IBS sempre frisa nessa questão de multiplicar para outras pessoas o que você aprendeu, eles deixaram de participar de outras atividades da escola, até porque vai chegando o 7 de setembro e muitos vão para a banda marcial.

Multipliquei para outros 25 meninos e são esses que estão comigo agora. Mas se fosse colocar mesmo todos os que gostariam de estar, seriam muitos.

Os pais acham muito interessante os filhos estarem num projeto como esse. Quando tem algum evento na cidade, o pessoal chama e a gente vai lá [se apresentar]. A maioria das vezes foi no centro cultural. No 7 de setembro a gente toca o hino em forma de axé. É interessante, bem bacana.

Na Lata
A Batucarte, banda de lata liderada pela arte-educadora e faxineira Lethicia Lima
A Batucarte, banda de lata liderada pela arte-educadora e faxineira Lethicia Lima

DA FAXINA AO SOM

Eu não pensava [que ia ser arte-educadora]. Não acredito nessa história de adivinhar, mas sabe quando você sente que só vai restar você? E foi como aconteceu. Só restou eu para tomar conta da banda.

No início, eu ficava pensando: "Se eu pego essa responsabilidade de ensaiar eles, como eu vou conseguir fazer isso?" Mas eu permaneci lá porque as pessoas da cidade já sabem que eu canto e, por mexer com música, achavam que era mais fácil para mim.

Quando vi todas as coisas ali montadas, que a gente aprendeu da oficina, não podia deixar parado. Como percebi que as pessoas que estavam lá não se interessavam, eu não podia deixar sem ir para frente. Nós começamos a ensaiar e foi assim.

Na escola, eu só entro às 9 da manhã. Então ensaio com eles no período em que eu deveria estar limpando e faço a faxina só depois. Para você manter alguma coisa desse tipo, tem que fazer uns esforços, se não você não consegue.

Eu acho que o que me dá mais motivação para seguir é essa a vontade deles de querer fazer alguma coisa, de querer se apresentar, de querer mudar sua própria história porque a gente não tem nada disso aqui na cidade.

BATUCARTE NA RUA

Eu acho que faltou espaço e apoio porque seria muito mais fácil se as pessoas, por exemplo, as autoridades da cidade, vissem que é um projeto bacana. Deveriam pelo menos falar "a gente cede o espaço, está aqui".

O apoio moral é sempre bom para as coisas acontecerem, mas a falta de espaço também não é muito fácil porque você tem vizinhos e tudo, embora nunca tenham se incomodado.

Está todo mundo sempre no meio da rua. Daí, quando passa um carro, tem que buzinar antes para eles poderem se afastar. Essa questão do espaço é muito complicada.

Três horas da tarde tem sol forte. Eles já ensaiaram na chuva também. Mas é força de vontade porque todo dia vai ter sol, então a gente vai ter que estar debaixo do sol mesmo, ensaiando.

A gente foi muito de meter a cara mesmo e fazer as coisas, pegar a caixa e trazer para tua casa, ligar o som e ensaiar. Ou então você vai lá e fala "ah eu quero ensaiar nesse espaço aqui". O pessoal diz que não tem como, que tem que fazer um ofício primeiro.

Como eu cansei dessa história de não ter apoio, de não ter essa coisa de alguém estar te ajudando, decidi fazer. Fui falar com os meninos: "Você quer estar na banda? Então você tem que conseguir uma lata, tem que conseguir seu tambor. Traga um cabo de vassoura e eu vou fazer sua baqueta." E sempre foi assim.

Tem que ver na cidade quem está pintando as casas, para ver se eles podem dar as latas. A única coisa que a gente compra é a cola quente.

Os tambores, a gente tem que pedir. Os meninos vão lá, pedem para a mãe um tambor [de água] que está lá no fundo da casa. Daí a gente dá um jeito de pintar.

E as baquetas são feitas com cabo de vassoura. Meu avô, que está sempre sentado ali no fundo de casa, serra os cabos, a gente pega uma espuma e envolve a ponta do cabo e coloca um pano por cima e uma borracha. Está feita a baqueta.

O que a escola podia fazer mesmo era só dar essa caixa de som. Eles sempre emprestavam a caixa de som e o microfone. Dentro da escola, eu até entendo, não tinha como. São nove oficinas e as nove são uma coisa mais concentrada. Só a nossa que é bem barulhenta.

O FUTURO

Eu queria [para a banda] que tivessem músicos para a gente poder acrescentar e não ficar só na percussão. Pelo menos que a gente acrescentasse um baixo, uma bateria e um teclado. Eu queria substituir o reciclável pelos instrumentos de verdade porque não deixa de ser alternativo.

Eu até penso, às vezes, se perderia a essência da coisa porque é interessante uma banda de lata, é diferente e tudo. Mas eu sonho mesmo que fosse dessa maneira, que fosse de instrumento de verdade.

Conheça o IBS.

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